Contra autocrata, frente reúne de socialistas à ultradireita na Hungria

Seis principais partidos de oposição fecharam acordo para apresentar candidatos e programa únicos na eleição de 2022

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Bruxelas

A ideia de formar uma frente eleitoral de oposição parece ainda verde no Brasil, mas tornou-se madura para enfrentar um dos principais aliados ideológicos do presidente Jair Bolsonaro, o premiê da Hungria, Viktor Orbán.

Contra o partido Fidesz, do político ultranacionalista que governa o país europeu desde 2010, juntaram-se as seis principais siglas de todo o espectro político, da esquerda socialista à direita radical.

A estratégia, já em marcha, é lançar em 2022 apenas um candidato em cada um dos 106 distritos eleitorais, um candidato único a primeiro-ministro, uma lista comum para as outras 93 cadeiras do Parlamento e um programa eleitoral também conjunto. Com isso, esperam concentrar os votos dos insatisfeitos com Orbán —​cerca da metade dos eleitores.

Homem de paletó azul escuro e gravata azul clara, cbelos brancos, gesticula com a mão direita em frente a parede com duas janelas
O premiê da Hungria, Viktor Orbán, em visita ao Reino Unido - Toby Melville - 28.mai.2021/Reuters

“É uma solução matemática que levou um longo tempo para se desenvolver politicamente. Foram necessários dez anos de ‘Orbanismo’ para que ela conseguisse emergir”, diz o professor e especialista em direitos humanos húngaro Miklós Haraszti, delegado da OSCE (Organização Europeia para Cooperação e Segurança) para liberdade de imprensa de 2004 a 2010.

O que mudou nessa década é que a frente única se tornou a única forma de apear Orbán do poder, dizem cientistas políticos. Desde que voltou ao cargo, em 2010, o primeiro-ministro mudou as regras para elevar progressivamente seu controle sobre várias esferas —alguns críticos chegam a descrever a situação atual como a de um Estado-máfia.

Para isso, ele se beneficiou do sistema eleitoral desproporcional da Hungria, que lhe garantiu mais de dois terços dos assentos na câmara única do Parlamento, embora tivesse obtido pouco mais da metade (52%) dos votos. A margem lhe permitiu mudar a Constituição, oportunidade logo aproveitada pelo único chefe de governo europeu a assistir à posse de Bolsonaro —que, por seu lado, prometeu a Orbán uma “grande parceria para o futuro”.

Já no primeiro ano o premiê começou a implantar seu projeto de “democracia iliberal”, que serviu de exemplo para outros líderes autoritários dispostos a “minar por dentro” a democracia, na análise do cientista social Yascha Mounk, professor associado na Universidade Johns Hopkins e colunista da Folha.

Homem de óculos, paletó preto e camisa branca sorri
O prefeito de Budapeste, Gergely Karácsony, após derrotar o Fidesz em eleição municipal - Bernadett Szabo - 13.out.2019/Reuters

Orbán mudou a lei eleitoral para tornar o sistema húngaro ainda mais desproporcional do que já era. Sob o argumento de simplificar as regras, reduziu o número de distritos eleitorais e aplicou o chamado “gerrymandering” —alterou os perímetros das circunscrições para favorecer seu partido. Na eleição seguinte, em 2014, o Fidesz conseguiu os dois terços do Parlamento com apenas 42% dos votos.

A ideia de uma frente única de oposição foi apresentada nessa época pelo atual prefeito de Budapeste, Gergely Karácsony, mas foi considerada ridícula pela esquerda e pela direita, diz Haraszti. Nas eleições de 2018, com baixíssima adesão, também não prosperou.

“Mas, nas eleições municipais de 2019, o método arrebatou o poder em dez grandes cidades —incluindo a capital— e mostrou que era esse o caminho", afirma o professor.

Pelo acordo costurado para 2022, o candidato a primeiro-ministro será escolhido pelos próprios eleitores em primárias de dois turnos —os pré-candidatos mais votados no primeiro, em setembro deste ano, concorrem à indicação final em outubro.

O prefeito da capital (leia perfil abaixo) é apontado como favorito por analistas, mas, nas pesquisas, o concorrente mais popular no primeiro turno das primárias é Péter Jakab, líder do direitista Jobbik. Aos 40 anos, ele representa a nova geração do partido e tenta empurrá-lo para o centro e afastá-lo se seu radicalismo xenófobo.

Enquanto Karácsony evita atritos com Orbán, Jakab partiu para o confronto direto. Em evento, disse ao primeiro-ministro “Nunca vi um covarde como você”, e já foi multado por tentar entregar a Orbán um saco de batatas no Parlamento, em protesto contra o governo.

Pela direita concorre também Péter Márki-Zay, 49, paí de sete filhos que ganhou projeção ao derrotar o Fidesz e assumir a prefeitura de Hódmezovásárhely —“acredite, o nome é impronunciável até para um húngaro”, brinca Haraszti. Fundador do Todos pela Hungria (MMM), em 2018, ele diz representar um movimento, e não um partido.

Na centro-esquerda, além do prefeito de Budapeste, já está definida a candidatura de uma eurodeputada de 49 anos, Klára Dobrev, da Coalizão Democrática (KD). Vice-presidente do Parlamento Europeu e casada com o ex-primeiro-ministro húngaro Ferenc Gyurcsány, se eleita ela será a primeira chefe de governo mulher do país.

O representante do centro é András Fekete Gyór, 32, do Momentum, que liderou grandes passeatas de protesto após investidas de Orbán contra liberdade de imprensa e direitos LGBT. Pelas pesquisas mais recentes, ele tem a menor parcela das intenções de voto.

São perfis muito diferentes, mas a oposição tem sido bem-sucedida em aparar arestas, afirma o especialista em eleições Gábor Tóka, pesquisador sênior da Universidade da Europa Central. “Os partidos têm sido muito coesos, surpreenderam a todos com a capacidade de manter a aliança", afirma.

A capacidade de evitar fraturas internas foi comprovada nas eleições de 2019, afirma o cientista político: “Em milhares de cidades menores, com interesses locais, houve menos de 1% de defecções. Em nível nacional, deve ser mais simples”.

A principal dificuldade estará depois da escolha dos candidatos, prevê Tóka, que edita o boletim Vox Populi, de análise de pesquisas. É nos seus cálculos que fica claro o impacto do redesenho dos distritos: se a votação fosse no final de maio, o candidato único da oposição teria 2% a mais dos votos, mas Orbán e o Fidesz levariam 103 assentos, contra 96 dos outros partidos.

E não se trata apenas de intenção de voto. “É difícil colocar um número nisso, mas o governo têm acesso desproporcional a meios para mobilizar a opinião pública, uma vantagem volumosa que não seria possível numa eleição justa e democrática”, afirma o cientista político.

Para começar, diz ele, a mídia independente e livre sobrevive no país, mas ficou restrita à internet. “A oposição terá grande dificuldade de atingir quem não se interessa por política, e esse povo é bombardeado pela mídia pró-Orbán”, diz Tóka.

A investida governista se dá em boletins diários em todas as emissoras de rádio, inclusive as musicais, e em 1 dos 2 grandes canais comerciais de TV, comprado por Lorinc Meszaros, microempresário arruinado que se tornou o homem mais rico da Hungria e é apontado por opositores de Orbán como seu testa de ferro.

A mídia televisiva estatal ocupa o terceiro lugar em audiência e sua principal função é manter mobilizados os apoiadores de Orbán, “que são muitos”, ressalva Tóka. “Este não é um governo impopular, e o Fidesz tem conseguido manter sua base fechada à mensagem da oposição e bastante hostil a seus rivais.” O premiê foi beneficiado por fundos da União Europeia e um ciclo econômico favorável, e usa a mídia para se promover como fiador dos “bons tempos”, diz ele.

Outra força desproporcional é a "assimetria extrema" no financiamento de campanha: segundo Tóka, nas eleições de 2019, para cada 1 florim da oposição, o Fidesz tinha 100 (somando gastos dos governos controlados por Orbán, companhias estatais, financiamento de indivíduos).

Também deve pesar no prato governista da balança o fato de que os orçamentos de cidades pequenas dependem totalmente do governo central. “Ter um prefeito de oposição não evita que as principais figuras políticas façam o jogo de Orbán na eleição nacional.”

Por fim, vem o controle da população rural. “O seguro-desemprego foi praticamente substituído em 2012 por um esquema de trabalho público que paga o salário mínimo. O acesso a isso está nas mãos da prefeitura e depende de verba do governo central”, relata Tóka.

“Com seu acesso privilegiado aos ouvidos dos habitantes dessas localidades, o governo não cansa de lembrá-los que seu bem-estar depende de seus cofres.”

A tarefa da oposição é portanto bastante complexa, diz o cientista político, “mas o que eles podem fazer além disso?”. Uma cautela adicional será fiscalizar cuidadosamente a votação e a contagem de votos, acrescenta Tóka.

Vencer não é impossível, mas será a parte mais fácil do processo, afirmam os analistas, e não porque sejam partidos de colorações tão díspares. “Há diferenças históricas, mas não programáticas, e eles devem ser capazes de conviver em harmonia por quatro anos”, afirma Tóka.

A maior dificuldade será “desorbanizar” o Estado. O premiê dissolveu as divisões entre Poderes, “passando a controlar o Judiciário, o comitê eleitoral, a agência de controle de concorrência, a mídia, as universidades e a cultura, sem falar na economia”, enumera Haraszti.

“A Corte Constitucional está tomada por juízes que obedecem cegamente aos interesses do Fidesz, e a agência que supervisiona a mídia está na mão de um corpo partidário que não pode ser removido”, exemplifica Tóka.

O conselho de orçamento, cujos membros foram apontados por Orbán, também pode vetar as contas do novo governo a ponto de inviabilizá-lo. Desmontar essas armadilhas seria viável se a oposição vencesse de forma esmagadora, como fez o Fidesz em 2010, mas essa hipótese é bastante improvável.

Se os desafios parecem enormes, "realisticamente, esse é o melhor cenário para a oposição; o pior e não descartado é ser mais uma vez derrotada por Orbán”, diz Tóka.

raio x

Gergely Karácsony

Filho de agrônomos dedicados à horticultura, o prefeito de Budapeste completa 46 anos no próximo dia 11.

Seu pai morreu quando ele tinha 6 anos e os quatro filhos foram criados pela mãe em Nyírtass, vilarejo de cerca de 2.000 habitantes no nordeste do país.

Formado em ciência política, entrou em 2009 para o partido Política Verde Pode Ser Diferente (LMP) e, desde 2013, é colíder do também ambientalista Diálogo para a Hungria.

Sua vitória em 2019 na capital húngara foi considerada um dos principais golpes políticos sofridos por Orbán.

Casado com uma educadora, tem três filhos.

Viktor Orbán

Filho de um empresário e de uma fonoaudióloga, ompletou 58 anos no último dia 31. Passou a infância em aldeias do centro da Hungria e estudou inglês e direito. Em 1989, cursou ciência política em Oxford (Reino Unido) com uma bolsa da Fundação Soros, do investidor que depois se tornaria um de seus principais alvos, George Soros.

Único chefe de governo europeu a assistir à posse de Bolsonaro, Orbán se tornou um dos principais exemplos de líderes autoritários dispostos a “minar por dentro” a democracia, na análise do cientista social Yascha Mounk, professor associado na Universidade Johns Hopkins e colunista da Folha.

Casado com uma jurista, Orbán tem cinco filhos.

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