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Democracia está em risco na América Central, diz ex-presidente da Costa Rica

Para Laura Chinchilla, crise na região se arrasta há algum tempo; ela alerta que a realização de uma eleição sem oposição na Nicarágua será um sinal de fracasso dos instrumentos internacionais

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Buenos Aires

Ex-presidente da Costa Rica, Laura Chinchilla, 62, diz que a América Central está vivendo seus dias mais difíceis desde as guerras civis dos anos 1970 e 1980. Primeira mulher a liderar seu país, ela governou entre 2010 e 2014 com uma agenda de centro-direita.

Nos últimos tempos, tem sido uma voz ativa na defesa da democracia, numa região que vê uma escalada autoritária em países como Nicarágua, El Salvador, Honduras e Guatemala. Cientista política com pós-graduação na Universidade Georgetown (em Washington), Chinchilla foi também consultora do Banco Interamericano de Desenvolvimento e da USAID (Agência de Desenvolvimento Internacional dos EUA).

Ela falou com a Folha por videoconferência de Tóquio, onde acompanha as Olimpíadas como membro do Conselho de Ética do COI (Comitê Olímpico Internacional).

A ex-presidente da Costa Rica Laura Chinchilla, durante visita ao Brasil, em 2018 - Evaristo Sá - 8.out.2018/AFP

A democracia está em risco na América Central? Sim, sem a menor dúvida. A crise da democracia na região não é algo que apareceu do dia para a noite, já havia sinalizações e tendências desde antes. Só que elas foram ignoradas por várias instâncias regionais, por organismos e pela comunidade internacional de um modo geral. Estamos assistindo a várias arbitrariedades em quase todos os países.

Na Guatemala, ocorreru a destituição de promotores, como a de Juan Francisco Sandoval, na última semana, que coordenava a Procuradoria Especial Contra a Impunidade (FECI) e estava realizando uma tarefa de combate à corrupção. Isso pouco depois de desmontarem a Comissão das Nações Unidas contra a Impunidade na Guatemala [que investigou escândalos como os que levaram à prisão do ex-presidente Otto Pérez Molina].

Em El Salvador, o avanço de Nayib Bukele contra a Justiça, destituindo juízes do tribunal constitucional por meio de um Parlamento que ele mesmo controla. Em Honduras também há limitações à Justiça.

E na Nicarágua, se o regime de Daniel Ortega conseguir levar adiante a fraude eleitoral em 7 de novembro, teremos um dano irreversível à região. Porque, a partir daí, haverá incentivos para que outros mandatários sigam na mesma via de escalada autoritária. O cenário é o mais arriscado e o mais perigoso para a América Central desde os anos das guerras civis.

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No caso da Nicarágua, assim como nos de Venezuela e Cuba, parece que a comunidade internacional e seus organismos estão se dando conta de que há uma limitação muito grande de sua possibilidade de atuação. A sra. está de acordo? O mundo está vendo com desilusão a degradação das democracias da região por fatores que nascem de dentro das próprias democracias. Antes, havia cenários de ruptura do Estado de Direito, muitas vezes com uso militar. Para esses casos, parece que os organismos internacionais tinham, sim, uma resposta. Uma maneira mais eficiente de atuar.

Mas, quando a degradação da democracia ocorre à luz do dia e em câmara lenta, utilizando os mesmos instrumentos da democracia, fica muito mais difícil a comunidade internacional atuar. Esses novos autocratas usam votações legislativas, manobras na interpretação de leis, nomeiam juízes pelas vias indicadas, mas que são seus amigos. É um cenário para o qual ainda não formulamos uma saída, uma resposta adequada.

E o que tem ocorrido é que, nesses casos, quando a comunidade internacional decide que é o momento de fazer algo para ajudar, já é muito tarde. Principalmente quando esses autocratas já concentraram também poder econômico, por meio de alianças com empresários ou estatizações. Aí eles se transformam em forças realmente muito poderosas.

Como começar a desenhar novos mecanismos para atuar contra esse novo tipo de autocracia? É preciso atuar de maneira drástica, coordenada, e fazer isso rápido. No caso da Nicarágua, já é tarde demais, mas se deve atuar para impedir uma eleição em que candidatos com potencial estão presos, que não terá observadores, em que a imprensa está calada à força. Se a fraude se consolida, será o fracasso de todos os instrumentos internacionais que temos atualmente, e isso vai ter reflexos nos casos de Cuba e Venezuela, e de outras autocracias que podem surgir ou se fortalecer. Vai ser um precedente verdadeiramente dramático.

E o que seria drástico, já que não estamos considerando, obviamente, intervenções militares? De modo nenhum. Pedir a intervenção militar é algo que surge em setores das sociedades impactadas pelas escaladas autoritárias. Mas são uma saída evasiva e que nem mesmo os que pedem sabem como aplicar, isso nem quais seriam as consequências. Obviamente que são uma opção repudiável.

As populações dos países são a linha de frente das democracias, são quem deve defendê-la. Não pode ser que se vote em líderes autocráticos e depois se peça que alguém de fora venha tirá-los do poder. Por isso que nada pode ser feito sem a representação popular. O que creio é que no plano das sanções não se está agindo corretamente. Nenhum pacote de sanções pode ser eficiente se não for acompanhado de uma estratégia diplomática clara e consistente.

Isso teria ocorrido na Venezuela? Sim, na Venezuela temos um exemplo claro disso. Quando era presidente, Donald Trump se vangloriava de impôr sanções e mais sanções. Mas não tinha um desenho de atuação diplomática e política clara. Então, num dia, diziam que todas as cartas estavam sobre a mesa, insinuando uma possível ação militar. No outro, admitiam conversas com mercenários, e depois, voltavam a falar de negociações entre regime e oposição. Era tudo muito errático, não se apontava para um caminho claro. Quando você aplica sanções econômicas e não tem uma estratégia diplomática, é como usar um garrote sem oferecer o caminho de saída.

Então a saída para a Nicarágua seriam sanções com mais alguma outra ação? Qual? A ideia de sanções econômicas é distinta em cada país. A Venezuela é um país rico. Se colocam sanções contra os funcionários do regime, eles têm de onde tirar mais recursos para eles mesmos, que é o que estão fazendo. Na Nicarágua, não é assim, porque é um país muito pobre. Não tem a fortuna do Estado venezuelano. Ao mesmo tempo, não há uma mística em torno de seus líderes como ocorre em Cuba, pelo menos para parte da população e da esquerda mundial.

Então faltam o dinheiro do chavismo e o carisma que até há pouco tinham os líderes cubanos. Então creio que as sanções podem funcionar no caso nicaraguense.

Bloquear os principais recursos que estão chegando a Ortega, remessas e empréstimos, que ele além de tudo não está usando para combater a pandemia, mas sim em sua campanha eleitoral clientelista. E, ao mesmo tempo, realizar uma ação clara de pressão por um diálogo buscando uma eleição livre.

A OEA [Organização dos Estados Americanos] não deveria estar esperando para aplicar a Carta Democrática e expulsar a Nicarágua, por exemplo. É preciso uma pressão real e drástica que pode levar Ortega a aceitar criar um mecanismo de negociação.

Como a sra. avalia a gestão de Joe Biden até aqui com relação à América Central? Parece que a única preocupação é parar com a imigração. De fato, sua prioridade é essa. Creio que as intenções são boas, mas é necessário aprofundar mais a questão de fundo, colocar o foco no que causa essa imigração. E, para isso, não se deve considerar, como a atual gestão está fazendo, que o problema de fundo da América Central é apenas a violência que ocorre nos países do Triângulo do Norte [El Salvador, Honduras e Guatemala].

A estratégia dos EUA não é clara, e há pelo menos três limitações. Uma, essa visão estreita de que os problemas da região se resumem aos países do Triângulo do Norte. Outra, é preciso colocar o foco nas questões que levam à imigração e que têm a ver com a saúde democrática desses povos.

E, em terceiro, usar mais que apenas os recursos dos EUA. Creio que precisam assumir uma liderança mais decidida e catalisar fundos e recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, da Corporação Andina de Financiamento, do Banco Mundial. É preciso alinhar todas as políticas de financiamento da região com um objetivo mais claro de mudança verdadeira. Vejo que estão atuando de modo isolado, e outros atores também. Sem coordenação, vai ser muito mais difícil.


Raio-x

Laura Chinchilla, 62
Graduada em ciência política pela Universidade da Costa Rica, com mestrado em políticas públicas pela Universidade Georgetown (EUA), foi deputada federal (2002-06), vice-presidente da Costa Rica (2006-08) e presidente do país (2010-14), chefiou diversas missões de observação eleitoral da OEA e atualmente integra Comitê de Ética do COI

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