'Evangélicos têm estranha atração por figuras autoritárias', diz autor ex-evangélico

Editor de uma das maiores revistas cristãs dos EUA durante sete anos lança livro sobre crise na igreja

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São Paulo

Evangélicos têm uma estranha atração pelo poder bruto e por figuras autoritárias”, ainda que esses líderes carreguem características pouco cristãs, como assédio, racismo, misoginia e palavreado chulo, e as eleições de Jair Bolsonaro no Brasil e de Donald Trump nos EUA estão aí para provar.

O fascínio que esse perfil exerce sobre o segmento ficou claro para Mark Galli, 69, após sete anos como editor-chefe da Christianity Today, uma das principais revistas americanas da área, fundada em 1956 pelo megapastor Billy Graham. “É da natureza humana colocar entre parênteses as falhas morais de seu político favorito. A disposição de tantos em deixar o caráter de lado mostra o triunfo da política sobre a fé."

Homem em evento na Flórida com o ex-vice-presidente Mike Pence com latinos evangélicos pró-Trump
Homem em evento na Flórida com o ex-vice-presidente Mike Pence com latinos evangélicos pró-Trump - Marina Dias - 23.out.20/Folhapress

O americano lançou recentemente o livro “Quando Foi que Começamos a Nos Esquecer de Deus?” (Mundo Cristão), sobre a crise da igreja evangélica nos Estados Unidos. Para Galli, nem sempre quem vê de fora entende o quão plural é essa parcela religiosa. Muitos conterrâneos, afirma, "pensam que os evangélicos são basicamente republicanos religiosos em vez de amantes de Jesus". Um erro.

O preconceito com evangélicos na imprensa secular havia refluído, com boas reportagens em veículos como o New York Times, diz ele. Mas os anos Trump levaram inclusive o jornal nova-iorquino a voltar a tratar esse grupo com má vontade, segundo Galli, mestre em teologia que já foi pastor presbiteriano.

Em 2020, ano em que se aposentou, ele passou a se ver como um "católico evangelizado".

Se pudesse resumir em uma imagem a crise na igreja evangélica, qual seria? As placas de “Jesus salva” durante a invasão do Capitólio dos EUA. Não quero sugerir que todos os evangélicos concordaram com o ataque, mas isso aponta para uma identificação evangélica avassaladora com a direita, e um forte contingente inclinado à extrema direita. Não há nada de errado em ser conservador e evangélico. Mas muitos americanos pensam que os evangélicos são basicamente republicanos religiosos em vez de amantes de Jesus. De modo geral, foi um símbolo de como os evangélicos são moldados mais pela política atual do que pela Bíblia.

O senhor sinaliza que o segmento enfrenta uma crise de confiança. Por quê? No último meio século, evangélicos têm se diferenciado dos fundamentalistas por sua disposição de se engajar na cultura. Em parte, é o desejo de se encaixar, demonstrar que eles são muito parecidos com os americanos típicos e sugerir que o Evangelho é para todos os americanos. Ficam tentados a adotar cada vez mais os valores da cultura mais geral para ter mais êxito evangelizador. Mas essa mesma abordagem os torna inseguros sobre sua própria identidade como cristãos evangélicos. Isso eventualmente sabota a confiança deles e leva alguns a se perguntar qual é o sentido em ser cristão se isso não parece fazer qualquer diferença.

Quais foram os grandes eventos que o senhor acompanhou como editor do Christianity Today? Primeiro, houve a decisão da Suprema Corte de permitir o casamento homoafetivo. Depois, os incidentes raciais, que trouxeram à luz o racismo e as disparidades que havíamos varrido para debaixo do tapete. Terceiro, Donald Trump, um homem de caráter profundamente perturbador que atraiu tanto apoio evangélico. Seria necessário um longo ensaio para mostrar como tudo isso se relaciona, mas basta dizer que eles confundiram a missão evangélica, que tinha como foco “ganhar os perdidos” para Cristo.

Como define a cobertura da imprensa não religiosa para o segmento? Tinha ficado muito melhor na última década. Alguns belos textos foram publicados na revista The Atlantic e no jornal The New York Times, artigos que eu gostaria que tivessem aparecido no Christianity Today. Mas estamos vendo ressurgir o preconceito e a ignorância sobre os evangélicos, incluindo nos dois veículos mencionados acima.

Existe a suposição não comprovada de que os evangélicos são antivacina, ou que os evangélicos brancos podem ser todos empacotados como racistas e reacionários de extrema direita. O fato de grande parte da mídia continuar a agregar todos os evangélicos brancos num único grupo é um preconceito antigo em nova embalagem.

O senhor, que virou católico em 2020, fala dos evangélicos que optaram por abandonar esse rótulo religioso para se distanciar da imagem de apoiador de Trump. É comum “culpar” os evangélicos brancos por elegê-lo em 2016. É uma percepção justa? Não, não é. Uma grande porcentagem de católicos votou em Trump, e uma grande porcentagem de mulheres dos subúrbios. Um bom número de hispânicos também. Nenhum grupo é responsável pela vitória de um candidato. É preciso uma coalizão.

O senhor diz que, dentro da igreja, há uma crise política à direita e à esquerda. À direita, não é apenas atração, mas devoção absoluta a Trump e à política de extrema direita. À esquerda, é quando o lobby evangélico dificilmente difere da plataforma do Partido Democrata. Sempre que os cristãos se identificam tanto com um partido que pensam que os cristãos do outro partido não são “cristãos de verdade”, você tem uma crise política na igreja.

O senhor fala também de um racismo praticado por minorias. Como seria isso? Com sua raiva compreensível sobre o racismo, muitos afroamericanos falam sobre os brancos de maneiras racistas. Quando falam sobre “supremacia branca”, “privilégio branco” e assim por diante, estão fazendo as mesmas coisas que os brancos fizeram com os negros em tempos passados: agrupando uma raça inteira e caracterizando-a negativamente.

Você também vê uma crise, por exemplo, entre imigrantes vietnamitas e hispânicos e/ou negros em algumas comunidades, nas quais as minorias estabelecidas se ressentem do sucesso das novas minorias. Até que todos nós —brancos, negros, hispânicos, asiáticos etc.— possamos admitir que cada um de nós é tentado ao preconceito, não iremos muito longe em nossa conversa sobre racismo.

Não quero mitigar o racismo branco contra negros na história dos EUA, sem mencionar o histórico de preconceito contra hispânicos, asiáticos e indígenas. Foi terrível. E há muito trabalho a fazer para corrigir as muitas injustiças que permanecem. Mas você não resolve o racismo encorajando-o de outra forma, não importa o quão justificado pareça.

Sua visão dá abertura à tese do racismo reverso, criticada por sugerir falsa equivalência. Acha que ele existe? Acredito que o racismo reverso existe, porque o racismo —como ganância, luxúria, inveja e assim por diante— existe no coração de todos os seres humanos em algum nível. É algo que todos nós temos que lutar durante a vida inteira. Temos uma tendência natural de pensar bem de nós mesmos e de depreciar os outros.

É comum associar os evangélicos ao conservadorismo mais radical. Essa imagem é verdadeira? Não muito. A maioria dos evangélicos da direita é mais moderada. Eles não votaram em Trump porque o viam como um político salvador, mas principalmente porque suas políticas eram mais ou menos tradicionalmente republicanas. Eles são do tipo que se incomodavam com os problemas de caráter de Trump, mas mesmo assim gostavam de suas opiniões sobre economia e aborto.

Durante a campanha de 2016, Trump foi denunciado por assédio sexual, falava coisas racistas e misóginas. Antes da Presidência, levava uma vida nada religiosa. Mesmo assim, tem grande apoio entre os evangélicos brancos. É da natureza humana colocar entre parênteses as falhas morais de seu político favorito. Os democratas fizeram isso em relação às escapadas sexuais de [Bill] Clinton nos anos 1990 e ainda o fazem em relação às aventuras de John F. Kennedy na década de 1960.

É, no entanto, um pouco preocupante que mais evangélicos não levem os problemas de caráter de Trump mais a sério. A disposição de tantos em deixar o caráter de lado mostra o triunfo da política sobre a fé.

Algo semelhante acontece no Brasil. Temos um presidente casado três vezes, que fala muito palavrão e defende bandeiras anticristãs, como a ideia de que o cidadão precisa comprar rifle em vez de feijão. Mesmo assim, tem o respaldo de muitos pastores. Por razões muito complexas para tratar aqui, evangélicos têm uma estranha atração pelo poder bruto e por figuras autoritárias, especialmente se elas se declararem cristãs. Eles gostam de líderes decisivos e que assumem o comando. Você vê isso na história da Guatemala, por exemplo, onde o brutal ditador Efraín Ríos Montt teve grande apoio nos anos 1980 porque se dizia evangélico. A contradição entre sua fé e suas ações, que incluíam genocídio, não intimidou a maioria dos evangélicos.

No Brasil, e também nos EUA, os evangélicos em geral querem medidas menos restritivas contra a Covid-19. Por que acha que isso acontece? É um paradoxo interessante. Enquanto os evangélicos são atraídos por líderes autoritários, quaisquer decretos governamentais de cima para baixo sobre como devem conduzir sua vida cotidiana encontrarão resistência. Será visto como um ataque à sua liberdade religiosa. Agora, se um líder autoritário afirma ter fé evangélica, ele pode se safar.

Evangélicos vêm aumentando sua influência política no Brasil, antes dominado pela Igreja Católica. Qual o impacto desse fenômeno? As tentações em torno de ganhar e manter o poder político são grandes, e quanto mais poder os evangélicos obtêm, maior é a probabilidade de eles comprometerem sua fé. É como tem sido nos EUA. Pode ser que os brasileiros saibam integrar melhor fé e política. Só posso orar.

No livro, você fala em “evangelicalismo morimbundo”. O que quer dizer? Refiro-me ao evangelicalismo americano vivido desde os anos 1940. Foi quando pastores reimaginaram o fundamentalismo, para que ele pudesse se incorporar à cultura. Esse movimento começou a se fragmentar na década de 1980, com a ascensão da direita religiosa. Não tem mais uma figura central, como Billy Graham. Não tem mais uma prioridade de missão, que era o evangelismo puro e simples. Não tem mais a confiança completa na infalibilidade das Escrituras. Não estou dizendo que algumas dessas mudanças não foram para o bem. Mas elas sabotam o senso de unidade que os evangélicos compartilharam por algumas décadas.

Dito isso, acredito que o evangelicalismo nunca morrerá. A cada geração, Deus levanta homens e mulheres que amam Jesus de uma maneira calorosa e pessoal. Esses são os evangélicos centrais e, enquanto o espírito de Deus estiver ativo no mundo, sempre encontraremos essas pessoas fazendo coisas incríveis para o seu Senhor.


Raio-x

Mark Galli, 69
Escritor americano, por sete anos foi editor-chefe da Christianity Today, uma das principais publicações sobre cristianismo nos EUA. Recentemente, lançou o livro “Quando Foi que Começamos a Nos Esquecer de Deus?”, sobre a crise evangélica.

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