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Patrícia Campos Mello

Em homenagem a Nobel da Paz Maria Ressa, imprensa tem obrigação de 'aguentar a barra'

Em 2018, filipina comparou Bolsonaro a Duterte e alertou para escalada da perseguição a jornalistas

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São Paulo

Quando conheci a jornalista Maria Ressa, em dezembro de 2018, ela falou sobre as táticas do presidente filipino Rodrigo Duterte para manipular os eleitores usando as redes sociais e sobre as campanhas de assassinato de reputação de jornalistas. E alertou: “Eles usam o mesmo roteiro, [Jair] Bolsonaro e Duterte. É importante continuar investigando. É preciso rastrear e responsabilizar essas pessoas.”

Na época, achei que era exagero. Mas Ressa, vencedora do prêmio Nobel da Paz de 2021, provou que, além de ser uma jornalista corajosa e investigadora incansável, é uma visionária, pois enxergou antes de muita gente a ameaça à democracia representada pela combinação de líderes populistas e redes sociais.

Maria Ressa participa da conferência Women In The World em Nova York, em 2019
Maria Ressa participa da conferência Women In The World em Nova York, em 2019 - Caitlin Ochs/Reuters

“O país deixou de ser uma democracia e passou a ser uma ditadura por meio do ódio online”, disse ela em 2018, em entrevistas a Ana Estela de Sousa Pinto e a mim. A jornalista e seu site, o Rappler, denunciaram os abusos da “guerra às drogas”, principal bandeira do governo Duterte, que resultou em mais de 12 mil mortes, muitas das quais de usuários de substâncias ilícitas e pessoas sem relação com o tráfico.

“Trolls patrióticos, que disseminam ódio online patrocinados pelo Estado, conseguiram mutilar o jornalismo, levar o público a desacreditar os jornalistas nas Filipinas. Assassinato de reputação era muito comum —usaram todos os animais possíveis para me xingar, zombavam da minha aparência, da minha voz. E diziam que os jornalistas críticos eram corruptos. Se você diz 1 milhão de vezes que alguém é corrupto, as pessoas acreditam. Usavam o poder de viralizar do Facebook para espalhar mentiras”, disse.

Ressa revelou a máquina do ódio de Duterte. Segundo ela, o presidente filipino usava redes de contas falsas, militantes ou pessoas contratadas para fazer ataques online coordenados contra jornalistas, opositores e defensores de direitos humanos, além de elogios ao governo. Lembra algum lugar?

O Facebook chegou a suspender 200 contas ligadas a Nic Gabunada, gerente de redes sociais da campanha presidencial de Duterte em 2016, por "atividade inautêntica coordenada”. Gabunada nega o uso de contas falsas e afirma que se trata de movimento orgânico, de apoiadores reais do presidente.

(No Brasil, em julho de 2020, o Facebook removeu 73 contas ligadas a integrantes do gabinete de Bolsonaro, seus filhos e aliados, que promoviam ódio e ataques políticos no Facebook e no Instagram.)

Assisti a uma palestra de Ressa em Doha, em dezembro de 2018, e fiquei impressionada com sua força e capacidade de manter o senso de humor e a ironia em meio aos ataques sistemáticos que sofria.

Miúda, com um terninho neutro que é seu uniforme, a filipina de 58 anos parecia uma menina. Foi muito simpática comigo e perguntou mais do que falou –mais uma prova da excelente jornalista que é.

Queria saber tudo sobre o então recém-eleito presidente Bolsonaro. Questionou se também havia no Brasil ataques online misóginos contra jornalistas —naquele ano eles ainda não eram tão comuns como hoje— e perguntou sobre assédios judiciais contra a imprensa. À época, Ressa já enfrentava uma saraivada de processos movidos por apoiadores de Duterte e pelo próprio governo, tentativas de prisão, intimidação contra o Rappler, além de maciços ataques online orquestrados pelo presidente e seus apoiadores.

Ressa disse que foi a pressão sobre anunciantes que quebrou as pernas da imprensa filipina. Duterte, o líder autoritário, havia constrangido empresas a cortar publicidade em veículos que não fossem cordatos. E, com o tempo, os anunciantes se sentiram intimidados e reduziram as propagandas nessas mídias.

Há alguns meses, tive a honra de participar de um vídeo em apoio a Ressa, organizado pelo Centro Internacional de Jornalistas, que concedeu a ela o ICFJ Knight Award, pelo Comitê de Proteção a Jornalistas, que deu à filipina o prêmio Gwen Ifill, e pelos Repórteres Sem Fronteiras.

Eles nos mandaram uma máscara com a hashtag #CourageOn, e o resultado da campanha será usado para ajudar a pagar os advogados de Ressa. O mote é "hold the line" (aguente a barra), expressão usada pela jornalista para dizer que ela e o Rappler vão continuar investigando e não serão intimidados.

Em janeiro, ela me escreveu para dar parabéns por uma vitória em ação de danos morais contra políticos brasileiros por ofensas sexuais. Perguntei a ela como estavam indo as coisas e disse que estava torcendo por ela. E Ressa, fiel a seu estilo modesto, respondeu: “Tudo bem... Ainda lidando com processos”.

A jornalista é alvo de ao menos dez ações judiciais do governo, acusada de sonegação de impostos, difamação online e violação de leis do mercado de capitais. Em junho de 2020, foi condenada no caso de difamação, que prevê até seis anos de prisão, e recorre em liberdade. Já foi presa duas vezes.

“Estamos vendo nossa democracia sofrer uma morte por mil cortes. Pequenos cortes que estão fazendo sangrar o corpo político das Filipinas. Quando houver um número suficiente de cortes, a democracia estará tão fraca que acabará morrendo.” Ressa usou essa analogia para descrever a ascensão do autoritarismo nas Filipinas em cena captada do documentário “Mil Cortes", de Ramona S. Diaz.

Como ela já afirmou, seu caso é um “sinal de alerta” para o jornalismo livre e independente em todo o mundo. Em sua homenagem, a imprensa tem a obrigação de "aguentar a barra".

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