Europa procura gás na África diante de crise energética com Guerra da Ucrânia

Líderes africanos celebram retomada do investimento, mas lamentam que só agora tenham poder de barganha no assunto

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Max Bearak Melissa Eddy Dionne Searcey
The New York Times

Líderes europeus estão se dirigindo a capitais africanas, ansiosos por encontrar alternativas ao gás natural russo. Com isso, despertam esperanças entre seus colegas na África de que a Guerra da Ucrânia possa modificar a relação desigual do continente com a Europa, atraindo uma nova onda de investimentos em gás, a despeito da pressão para migrar para fontes de energia renováveis.

O presidente da Polônia foi ao Senegal em setembro buscando fazer negócios com gás. O premiê alemão, Olaf Scholz, chegou em maio à procura da mesma coisa e disse ao Parlamento de seu país que a crise energética exige "que trabalhemos com países onde há possibilidade de desenvolver campos de gás", ao mesmo tempo cumprindo promessas de redução das emissões de gases causadores do efeito estufa.

Premiê da Alemanha, Olaf Scholz, e presidente do Senegal e da União Africana, Marcky Sall, durante entrevista coletiva em Dakar - 22.mai.22/AFP

"A guerra provocou uma virada total", diz Mamadou Fall Kane, assessor energético do presidente do Senegal. "A narrativa mudou." A enxurrada de manifestações de interesse por parte da Europa está levando a projetos energéticos novos ou que estão sendo acelerados, e fala-se em mais ainda por vir.

A esperança nas capitais africanas é que a demanda europeia leve ao financiamento de instalações de gás não apenas para exportação, mas para o consumo interno. A questão assume importância enorme em algumas partes do continente.

Ministros do governo italiano vêm acompanhando executivos da Eni, uma das maiores empresas energéticas do mundo, para a Argélia, Angola, República do Congo e Moçambique, onde um terminal de gás natural operado pela Eni está previsto para começar a fornecer gás à Europa em questão de dias. A empresa agora discute com o governo moçambicano a possibilidade de construção de um terminal adicional.

Nas últimas semanas, autoridades do Congo iniciaram um giro internacional de marketing para atrair empresas americanas e europeias para os novos blocos de petróleo e gás que colocaram em leilão. Ativistas climáticos criticam o leilão porque abrange áreas petrolíferas que coincidem em parte com uma reserva de gorilas, além de áreas de turfeiras frágeis que armazenam volumes imensos de dióxido de carbono, um dos responsáveis pelo aquecimento global.

Líderes africanos entrevistados lamentaram que foi preciso uma guerra a milhares de quilômetros de distância, na Ucrânia, para lhes conferir poder de barganha em negócios energéticos, descrevendo o que enxergam como "dois pesos e duas medidas". Afinal, por centenas de anos a Europa usou não apenas gás natural mas também combustíveis muito mais sujos, como o carvão, para alimentar uma era de industrialização e formação de impérios.

O argumento principal dos líderes africanos é que os países menos desenvolvidos deveriam ter liberdade de usar mais gás nos próximos anos, a despeito da crise climática e da necessidade de o mundo reduzir o consumo de combustíveis fósseis, porque seus cidadãos merecem um padrão de vida mais alto e acesso maior a fontes confiáveis de eletricidade e outros serviços básicos. Mas, segundo eles, os credores europeus e internacionais tornaram isso caro demais.

Líderes europeus frequentemente parecem pregar aos africanos sobre a importância de reduzir emissões de dióxido de carbono, mas oferecem pouca ajuda financeira para ajudá-los a criar alternativas energéticas verdes. Ao mesmo tempo, a Europa continua a produzir emissões muito maiores que a África.

"Apenas dois ou três meses atrás, os mesmos europeus que nos estavam pregando sermões dizendo ‘não ao gás’ vieram dizer que agora querem um meio-termo", diz Amani Abou-Zeid, comissária de energia e infraestrutura da União Africana. "Nós estamos tentando sobreviver. Mas, em vez disso, estamos sendo infantilizados."

Uma charge política recente do artista tanzaniano Gado, compartilhada nas redes sociais, captou essa frustração após um discurso do enviado dos EUA para clima, John Kerry, numa conferência ambiental no Senegal.

A charge parafraseia o discurso de Kerry, que está diante de um pódio. Sua fala reflete a "aula de moral" que muitos líderes africanos sentem estar ouvindo de seus colegas ocidentais. "Adivinhem uma coisa, pessoal", ele diz, sorrindo ao lado de bandeiras americanas ondulando ao vento. "A Mãe Natureza não mede de onde saem as emissões. Somos todos responsáveis por isso."

Enquanto ele fala, nuvens de poluição escapam de sua boca.

No discurso que fez, Kerry de fato mencionou a contribuição relativamente minúscula da África às emissões mundiais e o interesse comum do mundo em combater a mudança climática. Ele tem dito que os países africanos têm o direito de usar combustíveis fósseis para desenvolver suas economias.

O argumento de alguns líderes africanos é que o gás natural, mais barato e mais limpo que o óleo e o carvão, deveria servir de combustível de transição para o continente enquanto é feita a passagem para fontes renováveis como energia eólica e solar, como tem sido feito na Europa.

Em entrevista que deu pouco depois da invasão russa a Ucrânia, Kerry disse que a atmosfera conseguirá lidar com algumas usinas novas de combustíveis fósseis em países desenvolvidos, desde que as 20 economias maiores do planeta, que produzem 80% das emissões globais, estejam deixando a energia suja para trás.

Governos ocidentais têm procurado promover o crescimento da energia renovável em países menos desenvolvidos por meio de uma chamada transição justa, na qual eles arcam com parte dos custos de projetos novos. No ano passado, Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França e a União Europeia prometeram US$ 8,5 bilhões em ajuda e empréstimos para ajudar a África do Sul a trocar o carvão por fontes energéticas limpas.

Foi uma grande injeção de dinheiro para as energias renováveis no continente. Mas foi uma instância rara. De modo geral, o investimento ocidental em renováveis nos países africanos tem sido ainda mais parco que seus investimentos em projetos de combustíveis fósseis.

A pobreza energética no continente sufoca o crescimento de indústrias que geram empregos e sustentam economias. Mais de 600 milhões de africanos não têm acesso à eletricidade e quase 1 bilhão cozinha e aquece suas casas com lenha e carvão vegetal, combustíveis que causam problemas respiratórios graves e mortes.

A chegada da energia elétrica a todas as casas africanas poderia ser feita até 2030 com investimentos de apenas US$ 25 bilhões por ano, segundo a Agência Internacional de Energia –uma fração do que é investido em energia global hoje.

Especialistas dizem que a preocupação ocidental com o desejo dos países africanos de queimar mais gás em casa nos próximos anos é equivocada do ponto de vista da mudança climática. A agência projetou este ano que, se os países africanos desenvolverem todas suas reservas conhecidas de gás, a contribuição do continente para as emissões globais subirá apenas de 3% atuais para estimados 3,5%.

Tirando os maiores emissores do continente –a África do Sul, dependente de carvão, e os países do norte da África que são produtores substanciais de óleo e gás–, os 47 outros países africanos somados emitem menos até do que algumas das economias europeias menores, como a Grécia. Com os investimentos ocidentais em gás voltando a aumentar, é provável que essas disparidades se mantenham.

Apenas neste mês, o Reino Unido anunciou a emissão de até cem novas licenças para perfuração de gás, a despeito de estudos de seu próprio governo indicando que a melhor maneira de reduzir os custos energéticos no longo prazo será afastar-se dos combustíveis fósseis.

Em agosto, o presidente dos EUA, Joe Biden anunciou que retomará os arrendamentos de terrenos federais para exploração de petróleo e gás. E, em julho, o G7, o clube das maiores democracias industrializadas, diluiu uma promessa de parar de financiar projetos de combustíveis fósseis, dizendo que a guerra criou "circunstâncias excepcionais".

Organizações credoras como o Banco de Desenvolvimento Africano vêm investindo em gás há anos, mas, sem a entrada de dinheiro da Europa, os projetos podiam levar décadas para ser iniciados.

Os preços do gás na Europa vêm caindo porque as maiores economias do continente conseguiram repor a maior parte do gás que compravam da Rússia com gás importado da Noruega, norte da África e EUA. Especialistas preveem que, nos próximos anos, boa parte da demanda europeia de gás será suprida por esses países e também pelo Qatar, que está previsto para abrir a maior instalação de gás do mundo em 2025.

Mesmo com a enxurrada de visitas de líderes europeus à África, alguns dos projetos e propostas para a região vieram acompanhados de obstáculos importantes.

A italiana Eni, pertencente em parte ao estado, comprou uma plataforma flutuante de gás natural ao largo do Congo por mais de meio bilhão de dólares. Executivos da empresa e representantes governamentais que visitaram desde o início da guerra começaram a acelerar o projeto para que possa produzir gás já em 2023. Até 2024 a empresa também prevê dobrar suas importações de Argélia, que já está conectada à Itália por um gasoduto transmediterrâneo.

Executivos da Eni discutem a possibilidade de um segundo terminal flutuante em Moçambique, apesar de uma insurgência islâmica no norte do país que continua a ameaçar um grande projeto energético terrestre na região. As plataformas marítimas geralmente produzem menos gás, mas podem ser montadas em menos tempo.

"A guerra trouxe uma nova urgência", disse um porta-voz da Eni que se negou a ser identificado, citando uma política da empresa. "Ela acelerou um processo de adoção de novas fontes de gás que vinha sendo delineado havia anos."

Segundo o assessor energético senegalês, a visita do premiê alemão ao Senegal ainda não resultou em um negócio concreto. O governo senegalês vem trabalhando com a BP e a empresa americana Kosmos Energy para desenvolver um campo de gás marítimo que deve entrar em produção em 2023, segundo a Kosmos.

Os efeitos em cascata da guerra também levaram à retomada de discussões sobre um projeto de gasoduto trans-saariano que passou anos dormente e que supriria a Europa de gás da Nigéria passando pelo Níger, outro país que fez parte do itinerário do premiê alemão –e que também combate uma insurgência islâmica crescente.

Tradução de Clara Allain

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