Universidade na França admite passado nazista e parceria com campo de concentração

Instituição em Estrasburgo enfrenta legado de professores e médicos que faziam experimentos

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Aurelien Breeden
Estrasburgo (França) | The New York Times

Durante décadas, os alunos da prestigiada Universidade de Estrasburgo trocaram boatos de que havia restos mortais de vítimas dos nazistas, mantidos para fins anatômicos ou patológicos, espalhados pelo campus.

Havia motivo para a suspeita: quando a Alemanha anexou a região francesa da Alsácia, em 1940, investiu verba e recursos para transformá-la em um modelo de instituição nazista: a Reichsuniversität Strassburg.

Entre 1941 e 1944, os professores de medicina que ali trabalhavam forçaram pelo menos 250 pessoas retiradas de campos de concentração a passar por experimentos, alguns inclusive envolvendo armas químicas, como o gás mostarda, ou doenças fatais como o tifo. Oitenta e seis judeus foram tirados de Auschwitz e assassinados em um campo próximo para satisfazer uma coleta de esqueletos pré-planejada.

Human pathology specimens made at the ReichsuniversitŠt Strassburg from 1941 to 1944, on display in a former operating theater at the anatomy building of the University of Strasbourg, in France, May 12, 2022. In May the university released a report making clear that medical crimes its professors committed under the Nazis in WWII were extensive, and that the school had worked closely with a nearby Nazi concentration camp, the only one on French soil. (Dmitri Kostiukov/The New York Times)
Amostras de tecidos doenetes da antiga Reichsuniversität Strassburg expostas na atual Universidade de Estrasburgo, na França - Dmitri Kostiukov/The New York Times

Entretanto, é muito difícil obter o relato completo do que foi cometido nesse período. "A faculdade de medicina diz que não tem nada a ver com essa história. De maneira geral, a ideia é de que 'as paredes são inocentes', independentemente do que os nazistas tenham feito dentro delas", explica Christian Bonah, historiador médico da universidade.

Só que agora essa recusa em encarar o passado está sendo contestada: em maio, a universidade divulgou um relatório de 500 páginas em que reformula completamente a visão de si mesma e afirma explicitamente o que até então só se dizia aos sussurros: o povo da Alsácia também trabalhou na Reichsuniversität; os crimes médicos cometidos pelos professores foram muitos; e a faculdade trabalhava em parceria com um campo de concentração.

O documento foi encomendado pela própria entidade, em 2016, motivada pela celeuma causada pela descoberta de restos mortais de uma vítima dos nazistas em um armário da seção de anatomia.

"Foi um esforço genuíno no sentido de conscientização da nossa história. Foi o divisor de águas. Vários ex-funcionários me procuraram depois da divulgação, chocados, alegando que a Reichsuniversität não era nossa universidade, mas mudaram de atitude assim que leram tudo. Não era um registro preto no branco como muitos pensavam", afirma Michel Deneken, reitor da universidade.

Uma equipe de estudiosos, a maioria especializada em história da medicina ou nazismo, trabalhou exaustivamente ao longo de mais de cinco anos. Desenterrou caixas de documentos e restos mortais das coleções de anatomia e patologia que, propositalmente ou não, foram deixados em porões, sótãos e depósitos do campus —e até em um teto rebaixado.

Encontraram cerca de dez mil prontuários médicos, analisaram quase 300 dissertações, mais de 150 mil páginas de arquivos e criaram uma base de dados colaborativa. "Tentamos reconstruir com todos os detalhes o funcionamento da faculdade de medicina de uma universidade altamente 'nazificada', com grande número de alunos, uma injeção robusta de verba para pesquisas e acesso a cadáveres", diz Paul Weindling, membro da comissão e professor de pesquisas da Universidade Oxford Brookes.

O comitê descobriu que a universidade tinha laços mais estreitos do que se imaginava anteriormente com o campo de concentração de Natzweiler-Struthof, 40 quilômetros a sudoeste de Estrasburgo, onde os detentos e os transferidos de outros locais, como Auschwitz, eram objeto de experimentos.

Ao longo da guerra, 52 mil pessoas foram detidas ali; 20 mil morreram. Foi o único campo alemão em solo francês. "É preciso que se esclareça o que aconteceu e onde aconteceu, dentro do contexto nazista. Hoje a universidade aceita isso de boa vontade", comenta Weindling.

Mas nem sempre foi assim. Em 2015, quando um livro denunciou a existência de restos mortais de judeus na seção de anatomia, as autoridades da cadeira médica, furiosas, negaram veementemente. No mesmo ano, porém, Raphael Toledano, médico judeu de Estrasburgo que pesquisava o período nazista, encontrou uma carta escrita por Camille Simonin, professor de medicina e legista.

Este foi responsável pela autópsia em 86 judeus assassinados na câmara de gás de Natzweiler-Struthof, em 1943, a pedido de August Hirt, anatomista da universidade, para criar uma coleção de esqueletos que exemplificasse a ideologia nazista em relação à hierarquia de raças.

Os corpos foram encontrados em tanques instalados no porão do departamento de anatomia quando Estrasburgo foi libertada, em 1944. Na carta, Simonin explicou que preservara parte dos cadáveres como prova para ajudar a promotoria nos julgamentos pós-guerra. Em julho de 2015, Toledano os encontrou em uma sala, usada como depósito do instituto de medicina legal da universidade, que vivia trancada.

Devido à polêmica que a descoberta causou, foi instaurada a comissão, da qual Toledano se afastou em 2018, depois de desentendimentos internos, pois achava que a pesquisa poderia ser mais aprofundada. Mesmo assim, elogia o relatório. "Houve muita resistência; foi, literalmente, algo que permaneceu muito tempo escondido no fundo do armário, mas agora conseguiram despoluir o ar."

Em 1939, conscientes da ameaça do outro lado da fronteira, na Alemanha, os estudantes e funcionários da universidade foram para Clermont-Ferrand, 480 quilômetros a sudoeste. A administração admite que foi mais fácil focar o heroísmo dos anos passados ali, quando os franceses criaram uma rede de resistência desbaratada pela Gestapo.

A medalha conquistada por causa dela continua em destaque no escritório de Deneken. "A universidade se escondeu atrás dessa glória para evitar a curiosidade em relação ao que ocorrera em Estrasburgo, fazendo um paralelo entre a crença antiga de que a resistência tinha sido ampla e que o verdadeiro coração francês estava em Londres, com Charles de Gaulle, nunca em Vichy, com Philippe Pétain. Só que isso não era verdade", enfatiza.

A comissão recebeu uma verba de € 750 mil —8% de seu orçamento anual para pesquisas—, quantia que saiu praticamente inteira da própria universidade. Aos seus membros foi pedido que expandissem a história da Reichsuniversität e determinassem se ainda havia no campus restos mortais usados em outros experimentos.

Eles acharam mais de mil lâminas de microscópio de Hirt, além de uma coleção de patologia que incluía 134 preparações macroscópicas mantidas em jarros —como amostras de tecidos ou órgãos—, mas não encontraram provas de que esses objetos estivessem ligados aos experimentos criminosos. Também confirmaram a identificação feita por Toledano, de mais de 230 russos que morreram nos campos e cujo corpo foi usado para pesquisas anatômicas.

homem manuseia pastas sob mesa, em sala com estantes de livros
O historiador Christian Bonah manuseia documentos que fizeram parte da investigação na Universidade de Estrasburgo, na França - Dmitri Kostiukov - 12.mai.22/The New York Times

O relatório ainda revela os crimes cometidos por três professores da faculdade de medicina da Reichsuniversität que usavam o campo como fonte de seus experimentos: Hirt, Eugen Haagen e Otto Bickenbach.

Já se sabia que quatro detentos do grupo sinti (cigano) morreram depois que Bickenbach os usou como cobaias para o fosgênio, gás de combate usado na Primeira Guerra Mundial, mas o comitê identificou outras 36 vítimas. E mais sete dos testes com o gás mostrada de Hirt, além de 196 mortos em decorrência do estudo de Haagen sobre a vacina contra o tifo.

Os especialistas fizeram questão de frisar que esses pesquisadores nazistas seguiram os métodos científicos ao extremo, sem nenhuma diretriz de ética, mas não eram pseudocientistas —tanto que a Agência de Proteção Ambiental americana usou os testes de Bickenbach como referência até 1988.

"O potencial da medicina de fazer o bem é infinito, mas geralmente ignoramos que o mesmo vale para o mal. É verdade principalmente para os médicos que atuam em um sistema político que permite, apoia e até recompensa as transgressões éticas. É por isso que precisamos manter os olhos na história o tempo inteiro", reflete Sabine Hildebrandt, médica de Boston e professora de anatomia da Universidade Harvard que fez parte da comissão e se dedicou extensivamente à questão da anatomia no Terceiro Reich.

Uma pequena placa de metal afixada perto de uma entrada pouco usada do prédio de anatomia é a única lembrança e celebração dos 86 judeus mortos sob a supervisão de Hirt em 1943, só que inclui apenas o nome daqueles que descobriram os corpos, em 2005, não o das vítimas.

A comissão recomendou que a universidade crie espaços públicos de reconhecimento dos crimes e identifique claramente os mortos, exiba e explique os restos humanos que continuam fazendo parte das coleções, garanta que os alunos aprendam o que houve durante o período e patrocine mais pesquisas históricas e de arquivo.

A instituição concordou. "Estamos encarando nossa história, e agora temos uma responsabilidade com as gerações futuras", conclui Mathieu Schneider, vice-reitor responsável pela implantação das mudanças.

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