Guerra da Ucrânia vira laboratório para novas armas de aliados ocidentais

Uso de drones e sistemas de informação esboçam modelo estratégico para guerras no futuro

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Lara Jakes
The New York Times

Três meses atrás, quando tropas ucranianas estavam avançando com dificuldade contra as forças russas no sul do país, o QG militar em Kiev enviou para o campo de batalha uma arma nova e valiosa.

Não era um lançador de foguetes, um canhão ou qualquer outro tipo de armamento pesado de aliados ocidentais. Era um sistema de informação em tempo real conhecido como Delta: uma rede online que tropas militares, autoridades civis e até cidadãos comuns autorizados podiam usar para rastrear e compartilhar informações urgentes sobre as forças russas.

Desenvolvido em coordenação com a Otan, o software mal havia sido testado em batalha até então.

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Operador de drone exibe filmagens de ataque contra a Rússia para companheiros do Exército ucraniano, em base subterrânea na região de Kharkiv, na Ucrânia - Linsey Addario - 11.mai.22/The New York Times

Mas quando as forças ucranianas atravessaram a região de Kherson numa grande contraofensiva, utilizaram o Delta, além de armamentos poderosos fornecidos pelo Ocidente, para expulsar os russos de cidades e vilarejos ocupados havia meses.

A grande recompensa veio na sexta-feira (11), com o recuo russo da capital regional, um dos alvos mais visados na guerra que já dura quase nove meses.

O Delta é um exemplo de como a Ucrânia virou um campo de testes de armas e sistemas de informação de ponta e de novas maneiras de usá-los —que, políticos e militares ocidentais preveem, poderão definir como se travam guerras por gerações.

É verdade que a batalha na Ucrânia ainda é em grande medida uma exaustiva guerra de atrito, com implacáveis e constantes ataques de artilharia e outras táticas usadas na Segunda Guerra. Os dois lados utilizam principalmente armas da era soviética, e Kiev já informou que seus estoques de munições para algumas delas estão minguando.

Mas, ao mesmo tempo que é travada a guerra tradicional, novos avanços em tecnologia e treinamento estão sendo monitorados de perto para averiguar como modificam a aparência dos combates. Além do Delta, essas ferramentas incluem barcos operados por controle remoto, armas antidrones SkyWipers e uma versão modernizada de um sistema de defesa aérea fabricado na Alemanha que as próprias Forças Armadas alemãs ainda não usaram.

"A Ucrânia é o melhor campo de testes, já que temos a oportunidade de colocar todas as hipóteses à prova em situação de batalha e introduzir alterações revolucionárias na tecnologia e em instrumentos modernos", disse Mikhailo Fedorov, vice-primeiro-ministro e ministro da Transformação Digital da Ucrânia, em outubro, numa conferência da Otan na Virgínia, na qual discutiu o Delta publicamente pela primeira vez.

Fedorov também destacou a utilização crescente de aeronaves e barcos operados remotamente, que, segundo especialistas militares, estão se tornando armamentos de primeira opção, algo que nunca foi visto em qualquer guerra anterior.

"Nas últimas duas semanas voltamos a nos convencer que as guerras do futuro usarão o máximo de drones e o mínimo de humanos."

No mar Negro, esses barcos carregados de explosivos culminaram num ataque ousado contra a frota russa em outubro.

As autoridades militares têm se negado, de modo geral, a comentá-lo ou dar detalhes das embarcações, mas EUA e Alemanha forneceram navios semelhantes à Ucrânia. Chaurav Gairola, analista da empresa de inteligência Janes, diz que o ataque no mar Negro revelou um nível sofisticado de planejamento, dado o aparente sucesso dos barcos pequenos e relativamente baratos contra poderosos navios de guerra russos.

Segundo ele, o ataque "impõe uma mudança de paradigma nas doutrinas da guerra naval e simboliza uma expressão de táticas de guerra futuristas", mostrando como a guerra no mar pode transcorrer no momento em que EUA e aliados se preparam para potenciais futuras agressões navais da China contra Taiwan.

Como não poderia deixar de ser, o uso aumentado de drones pelas forças russas incentivou os aliados da Ucrânia a enviar tecnologia nova para barrá-los.

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Militar ucraniano operador de drones troca bateria de equipamento durante busca por alvos da Rússia, na região de Donetsk, no leste da Ucrânia - Finbarr O'Reilly - 20.out.22/The New York Times

No final do ano passado as forças ucranianas começaram a usar os SkyWipers, que fazem interferência contra drones, para frustrar a ação de separatistas russos na região do Donbass. Eles podem desviar drones ou atrapalhar seu funcionamento, bloqueando sinais de comunicação. Foram desenvolvidos na Lituânia e estavam no mercado havia apenas dois anos —até serem dados à Ucrânia por meio de um programa da Otan.

Hoje os SkyWipers são apenas um tipo de bloqueador de drones em uso por Kiev. Mas foram identificados como um instrumento altamente cobiçado.

Rafael Loss, do European Council on Foreign Relations, diz que as defesas antiaéreas modernizadas não serão capazes por si de mudar drasticamente a situação da guerra, mas que o uso delas na Ucrânia mostra como Kiev já evoluiu, deixando para trás métodos da era soviética e alinhando-se com o que é feito pela Otan.

Mais que um sistema de alerta precoce, o Delta combina mapas e imagens em tempo real de ativos inimigos, chegando a mostrar quantos soldados estão em movimento e o tipo de armas que carregam.

Essas informações são combinadas com inteligência —incluindo informações obtidas por satélites espiões, drones e fontes governamentais— para decidir onde e como as tropas ucranianas devem atacar.

Kiev e as potências ocidentais determinaram que precisavam do sistema depois de a Rússia ter instigado uma guerra apoiada por separatistas no leste da Ucrânia, em 2014. O sistema foi desenvolvido pelo Ministério da Defesa com assistência da Otan e foi testado inicialmente em 2017, em parte para ensinar as tropas a não seguir o padrão russo de dividir informações entre unidades terrestres, em vez de compartilhá-las.

Desde então, o sistema foi incluído em exercícios de treinamento envolvendo os planejadores militares da Ucrânia e da Otan.

Soldado ucraniano segura arma antidrone em floresta nos arredores de Mikolaiv, na Ucrânia - Bulent Kilic - 2.nov.22/AFP

A partilha de informações é há anos prática corrente das forças americanas e da Otan. O que autoridades da aliança consideraram surpreendente no Delta é que a rede é tão amplamente disponível para as tropas que as ajudou a tomar decisões no campo de batalha de modo ainda mais ágil que Forças Armadas mais modernas. Em Kherson, ajudou a rapidamente identificar linhas de fornecimento russas a serem atacadas, segundo Inna Honchar, comandante do grupo não governamental Aerorozvidka, que desenvolve drones.

"As pontes foram pontos-chave. Armazéns e pontos de controle foram danificados, e o abastecimento das tropas tornou-se crítico", disse, à medida que os russos foram ficando cada vez mais isolados.

A primeira vez em que o Delta foi realmente posto à prova foi nas semanas imediatamente seguintes à invasão de fevereiro, quando um comboio russo de 65 km se pôs a caminho de Kiev. Drones ucranianos o sobrevoaram e rastrearam seu avanço, e as tropas avaliaram os melhores pontos para interceptar o comboio. Moradores enviaram informações constantemente atualizadas ao governo com detalhes que só poderiam ser vistos muito de perto.

Todas as informações foram colhidas, analisadas e disseminadas por meio do Delta para ajudar as forças ucranianas a obrigar os russos a bater em retirada, segundo líderes do país.

"Aquele foi o primeiro momento em que as possibilidades de uso do Delta foram postas em ação plenamente", disse o Ministério da Defesa em comunicado. Desde então, o Delta teria ajudado a identificar em média 1.500 alvos russos em todo o país por dia, "centenas dos quais foram eliminados" em 48 horas.

Os testes dos armamentos na Ucrânia estão ajudando autoridades e planejadores de defesa dos EUA e seus aliados a decidir como investir verbas militares nas próximas duas décadas.

Tradução de Clara Allain

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