Desmonte de plano para derrubar governo espelha ascensão do extremismo na Alemanha

Radicalismo de direita no país ressurgiu logo após Segunda Guerra; em 2020, foram 24 mil crimes de extremistas

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Madri

A operação que prendeu ao menos 25 integrantes de um movimento de direita radical na última quarta-feira (7), acusados de planejar um ataque ao Parlamento para dar um golpe no governo, trouxe mais uma vez aos holofotes o extremismo em uma Alemanha em constante trauma pelo passado nazista.

Nos dias seguintes, investigações elevaram o total de suspeitos no caso a 54 e revelaram detalhes do plano, que poderiam até incluir o assassinato do premiê Olaf Scholz. Os desdobramentos expuseram o caráter terrorista, mais perigoso, do Reichsbürger (Cidadãos do Reich), calcado em teorias da conspiração aos moldes do movimento QAnon americano.

Partidos de ultra e extrema direita começaram a ser fundados na Alemanha Ocidental ainda em 1946, um ano após o término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a derrota dos nazistas. Pelo menos nove deles foram criados até 1990, sendo que quatro acabaram banidos pelas autoridades.

Policiais em Bad Lobenstein-Saaldorf durante operações de busca por suspeitos de integrar rede golpista de extrema direita na Alemanha - Matthias Rietschel - 7.dez.22/Reuters

Mas o radicalismo ganhou mais visibilidade após a reunificação das Alemanhas, com a queda do Muro de Berlim. Se nos 45 anos anteriores a Alemanha Oriental —um regime comunista de tolerância zero com quaisquer rompantes do outro extremo— havia contabilizado oficialmente só 17 assassinatos por membros da extrema direita, em 1992 a porção leste concentraria a maior parte dos cerca de 1.500 crimes de ódio do país reunificado.

Um levantamento do jornal Die Zeit aponta que nos 20 anos seguintes à união, celebrada em 1990, pelo menos 130 pessoas foram assassinadas em ataques violentos motivados por racismo nas ruas de cidades alemãs. Desde então, muitos outros episódios têm acontecido.

Um dos casos recentes de maior repercussão é o que ficou conhecido como Tiroteios de Hanau, quando um radical de 43 anos assassinou nove pessoas em dois bares de narguilé na cidade próxima a Frankfurt, em 2020. Tobias Rathjen, que depois matou a mãe e se suicidou, foi diagnosticado com esquizofrenia e seu ato, considerado terrorismo. Em seu site, ele acusava o ex-presidente americano Donald Trump de lhe roubar ideias e slogans.

Naquele mesmo ano, a polícia contabilizou 24 mil crimes ligados à extrema direita, que variaram de exibição de símbolos nazistas e comentários antissemitas a ataques físicos e assassinatos. As atividades visaram principalmente a imigrantes, refugiados e alemães negros, e incluíram um aumento da violência contra asiáticos relacionada à pandemia —o coronavírus foi inicialmente identificado na China.

O Reichsbürger, que chegou a ser ridicularizado como maluco e bizarro, passou a ser rastreado com mais atenção pelas autoridades em 2016, quando um de seus integrantes matou com um tiro de espingarda um policial que havia sido enviado para confiscar suas armas. Dois anos após o caso, o grupo cresceu 80%.

Thomas Haldenwang, chefe do Escritório Federal para a Proteção da Constituição, departamento de inteligência doméstico da Alemanha, disse que o movimento ganhou mais corpo no ano passado, representando um "alto nível de perigo". Um desses perigos é que seus membros não são facilmente reconhecíveis como garotos carecas com tatuagens nazistas e coturnos nos pés.

Nas operações que desbarataram o plano do grupo, entre os 25 presos na quarta-feira havia, além de 15 pessoas com algum passado militar, um médico, um chef e um cantor lírico.

Segundo Carsten Koschmieder, pesquisador da Universidade Livre de Berlim, o Reichsbürger se imiscuiu na sociedade em geral e ganhou o apoio de alguma parcela dela. "Mesmo que os integrantes pareçam loucos, muitos têm empregos normais, amigos e assim por diante", diz à Folha.

Segundo ele, ainda que o movimento seja relativamente pequeno para conseguir derrubar um governo, ele representa um perigo. Em 50 das 150 residências nas quais foram feitas buscas nesta semana foram encontradas armas e equipamentos militares. "E eles estavam, ao que parece, dispostos a usá-los para ferir e matar pessoas."

Koschmieder observa o grupo há algum tempo, dentro de suas pesquisas sobre o extremismo de direita. "Na maioria das vezes, eles incomodam o Estado distribuindo passaportes de seu imaginário Reich [império] alemão, escrevem a autoridades locais dizendo que agora estão no comando ou processam o prefeito porque seu kaiser, não o prefeito, é quem teria autoridade", conta. "Mas alguns deles têm armas, alguns são violentos, organizados e são amigos de outros extremistas de direita. Eles foram bem ativos no movimento de negação da Covid e das vacinas. São antissemitas. E espalham suas ideias."

O Reichsbürger foi criado ainda nos anos 1980, e o órgão de inteligência da Alemanha estima que ele tenha hoje cerca de 21 mil membros ativos —com mil deles classificados como radicais. As 25 pessoas presas estavam sendo monitoradas desde o primeiro semestre deste ano.

Um deles foi identificado como Rüdiger Von Pescatore, 69, que morou em Santa Catarina. Ele tem duas empresas no estado e atuou como representante comercial de companhias de energia no Brasil. Ex-militar, teria sido expulso do Exército alemão por vender armas do estoque da Alemanha Oriental. Apesar de passar temporadas no Brasil, foi preso em Freiburg, no sul da Alemanha, onde mora sua filha.

Segundo o escritório de inteligência, o grupo planejava há cerca de um ano uma insurreição armada para instalar um governo próprio. Os planos incluíam a formação de grupos de "segurança interna" para assumir e manter o controle do país, treinamento de armas, sistemas de TI e todo um gabinete paralelo de líderes que assumiriam o controle no caso de um golpe bem-sucedido.

Os membros do braço militar deveriam realizar a "eliminação forçada do Estado constitucional democrático", segundo divulgado pelas autoridades alemãs.

O líder do grupo é Heinrich 13º de Reuss, detentor de um título monárquico que caducou com a abdicação do imperador Guilherme 2º e a consequente criação do Estado alemão moderno, em 1918. Aos 71 anos, ele foi fotografado sendo levado algemado pela polícia na quarta-feira.

Mas os Cidadãos do Reich rejeitam a ideia de que esse Estado republicano de 105 anos existe. A verdadeira Alemanha, dizem, é a monarquia constitucional que terminou no início do século passado. Outros argumentam que o país está sob ocupação militar, não respeitam a Constituição e acham que as leis não se aplicam a eles. No ano passado, um deles perdeu seu emprego público ao escrever "Reino da Baviera" em seu local de nascimento ao solicitar um passaporte, citando uma lei de 1913.

"Não há muitas armas em mãos privadas [na Alemanha], mas os Cidadãos do Reich estavam se armando ativamente, obtendo licenças para tiro esportivo", afirmou o professor de estudos de segurança Peter Neumann, do King’s College de Londres, à rede NBC. "E há ex-militares e policiais que sabem usar armas. Nesse sentido, eles são um movimento perigoso que ganhou apoio nos últimos dois anos."

Policiais detém o "príncipe" Heinrich 13º de Reuss em sua casa, em Frankfurt - Boris Roessler - 7.dez.22/DPA/AFP

Analistas se debruçam agora sobre o risco de que o complô desvelado nesta semana não seja o último —e a possibilidade de ele estar ligado a outros casos do tipo.

"Os problemas da Alemanha com a extrema direita não vão desaparecer. Por enquanto, esses grupos extremistas são díspares e desorganizados, mas quando alemães insatisfeitos se unem em torno de um único líder, o resultado pode ser uma catástrofe", escreveu no jornal britânico Daily Mail a historiadora anglo-germânica Katdja Hoyer, em referência clara a Adolf Hitler. "A classe política precisa urgentemente se movimentar —ou poderá aprender essa lição da maneira mais difícil."

O problema, porém, pode estar na própria classe política, como lembra Koschmieder. "Há grupos sem influência que prejudicam ou matam pessoas de quem não gostam. E há grupos mais ‘aceitos’, como o Alternativa para a Alemanha (AfD), partido que se senta no Parlamento e tenta espalhar as mesmas ideias, mas busca se distanciar dos radicais violentos. Ou finge fazer isso, como vimos nesta quarta."

Entre os detidos estava Birgit Malsack-Winkemann, ex-juíza e ex-deputada pela sigla radical. A legenda condenou os planos do Reichsbürger.

Passeata com 400 neonazistas em Kloetze, na Alemanha, em 2010 - Reinhard Krause - 4.abr.2010/Reuters

Assassinatos em crimes de ódio na Alemanha

  • 1980 Um bomba acionada por um radical de extrema direita mata 13 pessoas, incluindo ele, e fere 215 na Oktoberfest de Munique
  • 1993 Quatro jovens com idades entre 16 e 23 anos, usando adereços nazistas, põem fogo na casa de uma família turca em Solingen, assassinando três crianças e duas mulheres.
  • 2000 O neonazista Michael Berger mata três policiais em Dortmund e Waltrop
  • 2011 Dois homens e uma mulher do grupo Nacional Socialista Underground são presos pelos assassinatos, com tiros na cabeça, de oito comerciantes turcos e um grego, além de uma policial, entre 2000 e 2007
  • 2019 Por defender leis pró-migração, o político liberal Walter Lübcke é assassinado por tiros de espingarda em sua casa por um neonazista do grupo Combat 18
  • 2019 Transmitindo pela internet, o neonazista Stephan Balliet, 27, tenta invadir uma sinagoga no feriado judeu de Yom Kippur, assassina uma transeunte e ataca uma loja de kekab, matando um cliente, em Halle, na Saxônia
  • 2020 Tobias Rathjen, que divulgava manifestos racistas em seu site, assassina nove pessoas em dois bares de narguilé de Halle e depois mata sua mãe e se suicida
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