Encontro com Maduro na Argentina é cancelado, mas Lula reforça retomada diplomática

Caracas cita plano da oposição argentina para suspender viagem de ditador; brasileiro critica ingerências

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Buenos Aires

Marcada para esta segunda-feira (23), em Buenos Aires, uma reunião bilateral entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, foi cancelada por decisão de Caracas.

A informação, dada inicialmente pela assessoria da Presidência brasileira, foi mais tarde confirmada por um comunicado oficial que o regime divulgou para explicar o cancelamento da viagem de Maduro à Argentina —atribuído a uma suposta movimentação da oposição argentina.

"Nas últimas horas fomos informados de que há um plano elaborado no seio da direita neofascista cujo objetivo é levar a cabo uma série de agressões contra nossa delegação para montar um show deplorável, com a finalidade de perturbar os efeitos positivos de uma reunião regional tão importante e, desse modo, contribuir com uma campanha de descrédito, já fracassada, empreendida pelo império dos EUA", diz o texto, sem detalhar qual seria o plano "extravagante desenhado por extremistas".

O ditador Nicolás Maduro acena durante marcha em Caracas para lembrar o fim da ditadura de Marcos Pérez Jiménez (1952-1958) - Leonardo Fernández Vilória - 23.jan.23/Reuters

O comunicado foi divulgado depois de uma entrevista coletiva de Lula e Fernández, em que o brasileiro afirmou que a audiência que teria com Maduro teve que ser cancelada e "vai ficar para outra oportunidade".

Nos últimos dias, a capital argentina teve protestos contra a provável visita do ditador, cujo convite para participar da cúpula da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) foi mantido pelo presidente —a nota do regime confirma a ida do chanceler Yvan Gil para o evento. À Folha Fernández afirmou que o colegiado é um espaço do qual a Venezuela faz parte e criticou a opositora Patricia Bullrich, que havia pedido que fosse emitida uma ordem de prisão contra Maduro no caso de ele entrar no país. "Bullrich diz muitas coisas, é preciso lembrar que ela se vendia como a 'Bolsonaro argentina'."

Em fala na abertura de um fórum com empresários, Lula voltou a defender o regime venezuelano, citando a necessidade de "respeitar a autodeterminação dos povos" em qualquer país.

"Da mesma forma que sou contra a ocupação territorial que a Rússia fez na Ucrânia, sou contra muita ingerência nos processos da Venezuela. E, para resolver o problema da Venezuela, vamos resolver com diálogo, não com bloqueio, com ameaça de ocupação", disse. "Fizeram uma coisa abominável para a democracia que foi reconhecer um cara que não foi eleito, que não era presidente, que foi o [Juan] Guaidó. Esse cidadão ficou exercendo vários meses papel de presidente, sem ser presidente."

O líder opositor, que se denominou presidente em 2019 por chefiar a Assembleia Nacional, chegou a ser reconhecido por países como o Brasil como representante legítimo de Caracas. No mês passado, mesmo a oposição decidiu deixar de vê-lo como presidente interino.

Maduro fez uma aparição em Caracas nesta segunda, em um ato em lembrança do fim da ditadura militar de Marcos Pérez Jiménez (1952-1958). No evento, ele disse que seu regime apoia a proposta, que pautou os debates na Argentina, de uma moeda comum na América Latina. O dia na Venezuela foi marcado por manifestações também contra a ditadura, com funcionários públicos pedindo por melhores salários —nesta segunda divulgou-se o dado de que a inflação em 2022 na Venezuela foi de 234%.

O encontro de Lula com Maduro ocorreria um dia antes da cúpula da Celac e seria o primeiro deles desde que os países reataram os laços diplomáticos —rompidos em 2020 pelo governo de Jair Bolsonaro (PL); antes, na gestão Michel Temer (MDB), embaixadores foram retirados de suas respectivas missões, mas a presença diplomática mútua foi mantida em níveis inferiores de representação.

O petista anunciou a retomada de relações diplomáticas com a Venezuela no final de dezembro, antes mesmo de sua posse —Maduro chegou a ser convidado para a cerimônia, mas questões burocráticas impediram sua viagem a Brasília. Nesta semana, o governo brasileiro enviou um diplomata para dar início ao processo de reabertura da embaixada do país, em Caracas, e dos seus três consulados no território.

Em Buenos Aires, o presidente disse esperar que em até dois meses se atinja o que ele chamou de normalidade nas relações.

Lula defende que a reintegração da Venezuela à comunidade diplomática sul-americana é necessária para resolver seu impasse político interno, que já dura décadas. Em entrevista à Folha, o chanceler Mauro Vieira reiterou essa visão, ressaltando que retomar o diálogo com a ditadura não significa apoiá-la.

A despeito do cancelamento com Maduro, Lula ainda deve se encontrar com uma figura controversa antes da cúpula do Celac —Miguel Díaz-Canel, líder do regime de Cuba. Embora o governo anterior não tenha rompido os laços com Havana oficialmente, ele na prática deixou de dialogar com a ditadura e, em 2019, votou pela primeira vez contra a resolução anual da ONU que condena o embargo americano à ilha.

A presença de Venezuela e Cuba na Celac foi, aliás, uma das razões pela qual o governo Bolsonaro havia deixado o colegiado. Lula assinou o retorno do país ao grupo já na sua primeira semana no poder, incluindo a cúpula no roteiro de sua primeira viagem internacional do terceiro mandato.

A relação do presidente e do PT com regimes autoritários da América Latina se tornou uma das principais pedras no sapato do petista em corridas eleitorais e com frequência é usada por opositores como combustível para atacá-lo —ora com fatos, ora com desinformação.

Quando esteve no Planalto de 2003 a 2010, Lula foi próximo de Fidel Castro (1926-2016), líder da ditadura cubana, e Hugo Chávez (1954-2013), na Venezuela. Alas do PT também mantêm laços com os sandinistas da Nicarágua —que capitanearam a democratização do país até iniciarem uma guinada autoritária.

A lista de encontros de Lula na Argentina não está fechada, mas ele também pode se reunir com sua aliada de longa data e vice do país, Cristina Kirchner —que não participou da conferência oficial entre os governos na Casa Rosada devido a seu afastamento de Fernandéz— e com o diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), Qu Dongyu.

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