Descrição de chapéu Financial Times China Guerra da Ucrânia

China quer atrair países da UE e marcar distância da Rússia em 'reset' diplomático

Em meio a tempos atribulados com o fim da política de Covid zero, país planeja reduzir isolamento internacional

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

James Kynge Sun Yu Xinning Liu
Pequim | Financial Times

Os custos do abandono caótico da estratégia de Covid zero chinesa se acumulam. Não obstante um total oficial de mortos que praticamente não sobe, uma enxurrada de obituários de figuras públicas idosas, de acadêmicos a cantores de ópera, destaca o impacto do vírus entre a população vulnerável.

Os hospitais em várias partes do país estão sobrecarregados. A demanda enorme por analgésicos e medicamentos antivirais está gerando escassez em toda a Ásia. Projeções não oficiais sugerem que cerca de 1 milhão de pessoas podem morrer na onda de saída dos lockdowns na China.

Essas perspectivas não prejudicam apenas a imagem de Xi Jinping, o líder chinês mais poderoso desde Mao Tse-tung. Também dificultam o trabalho dos órgãos de propaganda de Pequim em defender as políticas seguidas, depois de passarem dois anos apontando para os grandes números de mortos no Ocidente como evidência da superioridade da governança chinesa.

O líder chinês, Xi Jinping, em reunião da cúpula do G20 em Bali, na Indonésia - Leon Neal - 15.nov.22/Pool/Reuters

Por trás de todo o caos, contudo, um reinício fundamental está em curso nas políticas externa e econômica de Xi. De acordo com autoridades e assessores governamentais chineses, Pequim está formulando políticas que visam melhorar laços diplomáticos que azedaram fortemente e reforçar a economia nacional profundamente exaurida.

A motivação do que é pretendido, cujo êxito ainda é incerto, vem de uma confluência de diferentes tensões econômicas, sociais e de diplomacia que atingiram níveis críticos, acrescentam.

Vários dos novos planos e políticas vêm colocar em prática o "espírito" do 20º Congresso do Partido Comunista, realizado em outubro, o evento mais importante da agenda política chinesa em cinco anos, que definiu o tom de uma série de objetivos de longo prazo.

Depois de meses de manobras políticas internas intensivas, Xi obteve um inédito terceiro mandato como líder do PC Chinês e conseguiu formar um politburo governante composto exclusivamente por figuras leais a ele. Agora, passado o Congresso, Xi procura efetuar uma correção dos rumos.

Do ponto de vista da economia, as metas principais são levar a economia mais lenta a voltar a um crescimento robusto, melhorar a situação de centenas de milhões de trabalhadores rurais chineses, estabilizar o mercado imobiliário fragilizado e tomar medidas contra a crise que afeta as finanças de dezenas de governos locais, segundo os funcionários e assessores governamentais.

Chen Zhiwu, um de vários economistas destacados que preveem que Pequim implementará uma série de políticas pró-crescimento, prevê que a meta para 2023 será de "6% ou mais" —bem mais alta que o crescimento de 4,4% projetado pelo FMI.

"Considerando que eles podem visar a uma taxa de crescimento média de 5% e que o crescimento em 2022 provavelmente terá sido em torno de 3%, precisarão de algo como 7% em 2023", diz Chen, professor de finanças na Universidade de Hong Kong. Vários outros economistas preveem um crescimento de mais de 5% no PIB chinês em 2023.

Do ponto de vista diplomático, a meta principal é melhorar relações com alguns países no Ocidente, após um período que em alguns momentos deixou Pequim se sentindo incomodamente isolada. O foco está nos laços com a Europa, gravemente prejudicados pelo apoio dado pela China à sua parceira Rússia durante a Guerra da Ucrânia.

"Na área da diplomacia, Pequim não quer se tornar rival de todos os países do Ocidente e não quer parecer isolada em fóruns multilaterais", comenta o sinólogo Yu Jie, do think tank britânico Chatham House. "A aventura militar russa na Ucrânia reduziu fortemente o retorno de Pequim sobre o investimento em seus laços bilaterais com Moscou."

Ao mesmo tempo que no mês passado Xi e o presidente russo, Vladimir Putin, prometeram aprofundar esses laços bilaterais, em conversas reservadas com o Financial Times várias autoridades chinesas buscaram distanciar claramente Pequim de Moscou em relação à questão da Ucrânia, uma mensagem que vem sendo repetida para alguns diplomatas europeus.

Alguns dos comentários foram incisivos. Um chinês que pediu para não ser identificado disse que Putin é louco, que a decisão da invasão foi tomada por um grupo reduzido de pessoas e que a China não deveria simplesmente seguir a Rússia.

Desconfiança em relação a Moscou

O ponto de partida do "reset" diplomático empreendido por Xi é uma reavaliação por Pequim dos benefícios de sua relação estreita com Moscou.

A China agora enxerga a probabilidade de a Rússia não conseguir vencer na Ucrânia e emergir do conflito como uma potência menor, com presença econômica e diplomática muito diminuída no palco mundial, segundo funcionários chineses.

Além disso, não obstante todas as declarações públicas de concórdia bilateral, alguns, falando reservadamente, expressam pelo menos certa dose de desconfiança em relação ao próprio Putin.

Cinco autoridades seniores com conhecimento do assunto disseram ao FT, em diferentes momentos dos últimos nove meses, que Moscou não informou Pequim de sua intenção de lançar uma invasão total da Ucrânia antes de Putin ordenar o ataque.

Esses comentários destoam da impressão dada por uma declaração conjunta emitida por China e Rússia em 4 de fevereiro, após um encontro entre Xi e Putin em Pequim, apenas 20 dias antes de a Rússia atacar a Ucrânia. Segundo a declaração, a cooperação sino-russo era ilimitada, "sem zonas proibidas".

Não foi divulgada uma transcrição da conversa, de modo que não se sabe exatamente o que foi discutido pelos líderes. Mas uma autoridade disse ao FT que o mais perto que Putin chegou de informar Xi foi dizer que a Rússia não excluiria a possibilidade de tomar quaisquer medidas possíveis se separatistas no leste da Ucrânia atacassem território russo e provocassem desastres humanitários.

A frase foi interpretada pelo lado chinês como indicativo do potencial de algum engajamento militar limitado, não da invasão em grande escala que Putin lançou.

Segundo chineses, as evidências que apontam para uma falha do entendimento incluem o rebaixamento, em junho, de Le Yucheng, então vice-ministro do Exterior e principal especialista em Rússia na pasta. Le vinha sendo cogitado amplamente como provável chanceler e hoje ocupa um cargo de vice-diretor da Administração Nacional de Rádio e Televisão.

Uma pessoa com conhecimento da situação disse que Le foi responsabilizado pela falha de inteligência sobre a invasão russa. Seja qual for a natureza exata do que Putin disse a Xi, diplomatas chineses interessados em reabilitar a reputação do país na Europa disseram em conversas reservadas que Pequim desconhecia a intenção de Moscou de lançar uma invasão em grande escala.

Essa é apenas uma vertente de uma estratégia mais ampla que visa reduzir o senso de isolamento da China e impedir que a Europa se aproxime ainda mais dos EUA.

O estratagema principal de Pequim é um esforço para tranquilizar suas contrapartes europeias, indicando a disposição de aproveitar os laços estreitos com Moscou para não deixar que Putin recorra a armas nucleares, disseram autoridades chinesas e europeias.

Outro aspecto é posicionar-se não apenas como potencial pacificador, mas também como parte disposta a contribuir para reconstruir a Ucrânia no pós-guerra.

Em comentários que fez a Putin no final de dezembro, o próprio Xi procurou retratar-se como estando do lado da paz. "O caminho para as negociações de paz não será tranquilo, mas sempre haverá perspectiva de paz, desde que não se desista dos esforços", disse. "A China vai continuar a defender uma postura objetiva e justa, trabalhar para unir a comunidade internacional e exercer um papel construtivo na resolução pacífica da crise ucraniana."

Em outro sinal de que a China quer abrandar seu antagonismo em relação ao Ocidente, Pequim alijou Zhao Lijian, um de seus mais destacados diplomatas da linha do "lobo guerreiro". Consta que o ex-porta-voz oficial do Ministério do Exterior hoje é um dos três vice-diretores de assuntos de fronteira e oceânicos, um departamento relativamente obscuro.

Zhao, que tem 1,9 milhão de seguidores no Twitter, frequentemente usava sua conta para lançar ataques ao Ocidente. Em 2019, Susan Rice, que foi assessora de segurança nacional de Barack Obama, tachou Zhao de "figura racista vergonhosa" depois de ele postar uma mensagem provocativa no Twitter sobre relações raciais em Washington.

Em sua tentativa de reparar os laços com potências europeias, Pequim está insistindo que suas contrapartes europeias concordem com o slogan "não à dissociação" —assinalando uma divergência clara com Washington, que procura limitar os laços comerciais dos EUA com a China em determinadas áreas, especialmente as que estão ligadas a tecnologias sensíveis.

"A China entendeu que antagonizou países demais ao mesmo tempo, especialmente alguns dos países desenvolvidos que ainda são seus principais parceiros comerciais e econômicos", diz o sinólogo Jean-Pierre Cabestan, da Universidade Batista de Hong Kong. "Por isso ela está fazendo um grande esforço de aproximação com países-chaves europeus e da UE —Alemanha, França, Itália e Espanha—, além dos aliados asiáticos da América, como Japão e Coreia do Sul, e parceiros dos EUA como Vietnã."

A UE é a maior parceira comercial da China, e Pequim tem um superávit comercial enorme com o bloco. Várias das maiores empresas europeias figuram entre os maiores investidores externos na China.

O desejo de um reajuste diplomático com a Europa parece estar dando resultados importantes. As visitas a Pequim em novembro do premiê alemão, Olaf Scholz, e do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, devem ser seguidas neste início de ano pelas do presidente francês, Emmanuel Macron, e da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni.

A expectativa é que Macron siga o exemplo de Scholz, manifestando-se contra a "desassociação" com a China, desse modo cedendo algum terreno a Pequim em sua estratégia de semear a divisão entre as potências europeias e os EUA.

Embora também já tenha falado na redução da dependência da China, Scholz, na visita em novembro, deixou claro que Berlim não apenas rejeita a "desassociação" como enxerga a China como "importante parceira econômica e comercial".

"Como Scholz, Macron se opõe à desassociação", diz Cabestan. "Ele continua a promover o engajamento. A China vai tentar aproveitar as ambições de autonomia estratégica de Macron para distanciar a Europa da América."

Autoridades e analistas europeus apontam que a esperança de que a China ajude a impedir Moscou de lançar mão de armas nucleares constitui uma motivação poderosa nas capitais europeias.

"A China sempre seria contra o uso de armas nucleares", afirma Susan Shirk, diretora do Centro da China no Século 21, da Universidade da Califórnia em San Diego. "Mas quando Xi diz esse tipo de coisa a líderes europeus, está querendo dar ênfase a uma certa distância da Rússia."

Há indícios de que essa abordagem esteja funcionando a favor de Pequim. "As relações entre China e Europa melhoraram significativamente porque a Europa não está defendendo a desassociação com a China ou exigindo independência estratégica", aponta Ding Chun, diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade Fudan, em Xangai.

"A Europa está diante de uma série de problemas, como a crise energética e a pressão sobre a recuperação econômica. As relações estão se recuperando, sem dúvida, mas não devemos ter expectativas muito grandes em relação ao quanto elas poderão avançar."

Independentemente das alegações de Pequim de que não recebeu aviso prévio da Rússia sobre a invasão da Ucrânia, ainda há ceticismo considerável em relação aos esforços da China de reparar laços com a Europa.

Autoridades da UE e dos governos de países-membros do bloco se queixam frequentemente do apoio da China à guerra de Putin e do fato de Xi não tê-lo pressionado para encerrar o conflito. Além disso, o modo como o conflito expôs claramente a dependência energética da UE em relação à Rússia acelerou um esforço para reduzir dependência semelhante da China a certos produtos tecnológicos e minerais brutos cruciais.

Em outubro, o serviço diplomático da UE, em documento reservado, exortou as capitais europeias a endurecer sua atitude em relação à China, em algo que uma autoridade sênior de Bruxelas disse ao FT que equivaleu a adotar uma lógica de competição plena, econômica e também política.

Festival de gastos?

O "reset" diplomático que a China pretende empreender está começando a se fazer sentir pelo mundo, mas Pequim vê mais importância em sua estratégia de reforçar o crescimento doméstico. A premissa não testada por trás da estratégia pró-crescimento é que nos próximos meses Pequim deve emergir do mal-estar econômico induzido pela Covid.

Han Wenxiu, líder na influente Comissão Central de Assuntos Financeiros e Econômicos, disse em dezembro que o primeiro trimestre de 2023 provavelmente será marcado por obstáculos importantes, mas que a expectativa é de uma melhora acelerada no segundo trimestre. "Temos a confiança, as condições e a capacidade de imprimir uma virada para melhor na economia chinesa como um todo", afirmou.

Considera-se que seus comentários têm peso extra porque a comissão na qual ele trabalha é presidida por Xi. Han indicou o setor imobiliário e os gastos dos consumidores como duas áreas de atenção. No caso do primeiro, que tem sido um dos principais fatores a impelir o crescimento do PIB nas duas últimas décadas, ele anunciou que "uma das maiores prioridades é prevenir e resolver os riscos".

Analistas interpretam isso como indicativo de que em algum momento deste ano Pequim pretende estabilizar o mercado, que em novembro sofreu uma queda de 28,4% nas vendas em relação ao mesmo período do ano anterior. Além do apoio verbal de Han, a China anunciou 16 medidas adicionais de apoio ao mercado imobiliário, e os bancos estatais prometeram estimados US$ 256 bilhões (R$ 1,3 trilhão) em crédito potencial para construtoras específicas.

O fortalecimento dos gastos de consumidores também foi um dos temas da Conferência Central sobre Trabalho Econômico, promovida em meados de dezembro. Essa conferência anual é vista como especialmente importante, porque ocorreu logo após o 20º Congresso do Partido Comunista e pode, portanto, ser interpretada como declaração de intenções da nova administração de Xi.

Assessores governamentais dizem que, a mais longo prazo, Pequim pretende alcançar sua meta de "prosperidade comum", aumentando substancialmente o número de pessoas do corte de "renda média". A curto prazo, porém, vários analistas preveem uma onda de gastos assistencialistas após o fim dos obstáculos criados pela Covid.

O estrategista de investimentos Andy Rothman, do fundo Matthews Asia, diz que, quando os lockdowns da Covid acabarem por completo, um pool enorme de poupanças familiares pode alimentar um festival de gastos. Ele destaca que desde o início de 2020 o saldo bancário total das famílias chinesas subiu 42%, ou US$ 4,8 trilhões (R$ 24,7 trilhões) —montante superior ao PIB do Reino Unido.

Rothman enxerga um retorno ao pragmatismo na política econômica de Pequim após o desvio estatista dos últimos anos, citando a promessa de Xi no Congresso do partido de elevar a renda per capita e proporcionar um ambiente favorável ao empreendimento privado.

Investidores de portfólios parecem dispostos a abraçar a ideia de que a economia chinesa esteja perto de recobrar sua saúde. O índice Hang Seng, de Hong Kong, um indicador das percepções em relação à sorte da China, recuperou-se fortemente de uma queda grande em outubro do ano passado.

Mas alguns analistas ainda hesitam mais, apontando para a emergência caótica dos lockdowns. "Com a política da Covid zero agora tendo ficado no passado, os mercados preveem uma recuperação excelente em 2023", diz Derek Scissors, economista-chefe da firma de pesquisas Beige Book. "Eles acabarão tendo razão, futuramente. Mas com a maré atual de Covid ainda em curso, os investimentos tendo caído para o ponto mais baixo em dez trimestres e os novos pedidos ainda fracos, é cada vez menos realista prever uma recuperação significativa no primeiro trimestre."

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.