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Livro que levou autor à prisão lembra perseguição do Estado Novo a japoneses

Relatos de Kishimoto não configuram ensaio histórico, mas descrevem a dor da discriminação com delicadeza extraordinária

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São Paulo

Um pacato imigrante japonês de 38 anos havia feito o serviço militar na Aeronáutica de seu país e chegou a mostrar fotos da época a seus vizinhos brasileiros. Eis que em 1942, já com a Segunda Guerra, o Brasil rompe relações diplomáticas com o Japão e, em meio à caça às bruxas, o imigrante é preso como espião —a acusação nunca foi comprovada— e enviado para a prisão da ilha das Flores, no Rio, e depois a uma das celas do Deops (a polícia política), em São Paulo.

O episódio é relatado em meio a uma centena de outros bem parecidos em "Isolados em um Território em Guerra na América do Sul", do professor e jornalista imigrante Koichi Kishimoto (1878-1977).

O livro já havia sido impresso no Brasil em idioma japonês, em 1947 e 1948, em edições que se esgotaram rapidamente —e devido a delas Kishimoto foi duas vezes preso, acusado de difamar o Brasil e artificialmente estimular tensões étnicas com a comunidade japonesa, e quase teve cassada sua naturalização, o que poderia tê-lo levado à deportação. Agora, sai pela primeira vez em português, pela Ateliê Editorial.

Imigrantes japoneses durante chegada em navio no porto de Santos - Acervo Última Hora - 12.jan.1960/Folhapress

A obra não traz um ensaio histórico sobre o racismo contra os imigrantes e não acrescenta informações espetaculares à bibliografia que tem relatado os maus momentos de milhões de japoneses fixados por aqui, depois da eclosão da última Grande Guerra.

Mas o texto é de uma delicadeza extraordinária, ao descrever a dor da discriminação sofrida em razão dos olhos puxados e dos cabelos negros bem lisos. Os personagens retratados demonstram apego sincero ao Brasil, mas ao mesmo tempo uma lealdade ao imperador que comandava, e não por culpa deles, uma potência beligerante inimiga.

Os japoneses, e o detalhe não é mencionado pelo livro, traziam diferenças fisionômicas em relação aos imigrantes dos outros países do Eixo —os italianos e alemães. Mas todos foram proibidos de enviar seus filhos a escolas que davam aulas no idioma familiar, e publicações em italiano, japonês e alemão foram todas sumariamente vetadas.

Guerra é guerra, e tais proibições eram até certo ponto compreensíveis. Mas o problema estava sobretudo na forma com que o Brasil da ditadura do Estado Novo praticava as proibições.

Foi truculenta a retirada forçada de 4.000 japoneses de Santos, no litoral paulista, porque, pela cabeça de algum policial ou militar, espoucou a suspeita de que eles espionavam para que os submarinos alemães torpedeassem cargueiros brasileiros.

Foi também truculenta a prisão de pais e mães que mantinham em casa livros escolares em idioma japonês para que os filhos os utilizassem, já que as escolas japonesas haviam sido de uma hora para outra fechadas pela polícia.

Ou, por fim, foi mais que truculenta a ordem dada pelo Deops para que japoneses, em poucos dias, esvaziassem o bairro da Liberdade a rua Conde de Sarzedas, que eles ocupavam com casas e comércio desde que, em 1908, começaram a chegar como imigrantes a São Paulo. A ideia era a de que, dispersas, as centenas de famílias de imigrantes seriam menos perigosas que se apinhadas em alguns quarteirões.

O fato é que a guerra terminou em 1945, na Europa e no Pacífico, mas a comunidade japonesa no Brasil atravessou uma divergência interna que o livro relata, em meio a outras fontes que consultou.

Uma parcela dos imigrantes acreditava ser falsa e forjada pelos EUA a informação de que o Japão havia sido militarmente derrotado. Segundo eles, o país asiático era indestrutível e protegido pelos deuses. Outra parte acreditava, resignada, que a derrota havia ocorrido e que a vida prosseguiria, sem que o Japão se tornasse o epicentro do poderio militar no Pacífico.

O conflito envolvia kachigumi ("vitoristas") e makegumi (derrotistas). Os dois grupos partiram para as vias de fato e, entre março de 1946 e janeiro do ano seguinte, algumas pessoas foram mortas e outras feridas. A evocação do episódio destrói mitos muito fortes no imaginário da imigração, com a imparcialidade da narrativa jornalística.

Uma outra conclusão leva o livro de Kishimoto a se tornar um ponto de encontro das duas alas da comunidade. Independentemente da derrota japonesa, o conjunto dos imigrantes se ressentiu da decisão do Estado Novo de expropriar todas as empresas de propriedade dessa parcela imensa de imigrantes.

O argumento do governo era o de que, sem a expropriação, os cofres oficiais não teriam como indenizar as vítimas de prejuízos bélicos que o Japão supostamente provocaria. Esses prejuízos faziam parte da ficção pela qual a ditadura se impunha junto aos brasileiros menos informados.

Isolados em Um Território em Guerra na América do Sul

  • Autor Koichi Kishimoto
  • Editora Ateliê Editorial
  • Tradução Seisiro Hasizume
  • 328 págs R$ 94
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