Religião volta a ser fator-chave em eleição na Nigéria, o país mais violento para cristãos

Partido governista vira alvo após romper tradição e formar chapa exclusivamente muçulmana

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São Paulo

Foi curto o tempo em que religião e região de origem, fatores definidores da sociedade civil na Nigéria, foram coadjuvantes. Nas eleições de 2019, de maneira inédita, eles ficaram à margem. Agora, para o pleito do próximo dia 25, esses dois elementos voltaram para o centro do caldeirão político.

O estopim para a insatisfação foi provocado pelo partido governista Congresso dos Progressistas. Rompendo com uma tradição de apresentar uma chapa com um candidato cristão e outro muçulmano, a legenda anunciou uma dobradinha de dois muçulmanos do norte do país para presidente e vice.

Homem caminha perto de cartazes de campanha na cidade nigeriana de Lagos
Homem caminha perto de cartazes de campanha na cidade nigeriana de Lagos - Temilade Adelaja - 31.jan.23/Reuters

O anúncio despertou críticas volumosas de comunidades cristãs, que se viram marginalizadas, e ajudou Peter Obi, do Partido Trabalhista, a colher um importante capital político —representante de uma inédita terceira via, ele é o único cristão na linha de frente da disputa eleitoral deste ano.

Vencer o pleito interrompendo a hegemonia das siglas tradicionais não é fácil. Para ganhar, é preciso obter 25% dos votos válidos e terminar à frente em dois terços dos 36 estados do país e na capital, Abuja. O partido governista detém 22 dos estados, o que ajuda a dimensionar sua força.

A insatisfação espelha outro desafio que ganha destaque nas eleições: a violência. Segundo relatório da ONG Portas Abertas, a Nigéria é o país que mais mata cristãos: foram 5.014 em 2022, número que representa quase 90% de todas as mortes de adeptos dessa religião nos 50 países analisados pela ONG.

Mas esse não é o único problema. No último ano, mais de 4.000 casos violentos, como ataques a bombas e a tiros, deixaram quase 11,4 mil mortos no país, de acordo com um monitor desenvolvido pelo Projeto de Localização de Conflitos Armados e pelo Centro pela Democracia e pelo Desenvolvimento (CDD).

"A insegurança é galopante em toda a Nigéria, com insurgências islâmicas no nordeste, banditismo no noroeste, separatistas no sudeste e confrontos entre fazendeiros e pastores nos estados centrais", afirma Uche Igwe, pesquisador visitante da London School of Economics.

O cenário é um desdobramento da atuação de grupos terroristas, como o Boko Haram e o Estado Islâmico, assim como de conflitos comunitários envolvendo disputas por terras cultiváveis, além de episódios de separatistas da região do Biafra, palco de uma guerra civil de 1967 a 1970.

O fracasso do presidente Muhammadu Buhari em combater a violência catapultou a insatisfação, diz Idayat Hassan, diretora do CDD. "O país fez de si um Estado do direito, não um Estado de Direito [um jogo de palavras com os termos "rule of law" e "rule by law", em inglês], o que permite a impunidade."

Dois dos casos mais recentes que chocaram o país foram um ataque a uma igreja na cidade de Owo, em junho, que deixou mais de 50 mortos e, meses antes, em março, a ação em um trem em Abuja, em que pelo menos sete pessoas foram mortas, e dezenas de passageiros, sequestrados.

Episódios do tipo se multiplicam. No último dia 3, 41 pessoas morreram em um confronto no estado de Katsina, no norte do país, terra natal de Buhari. Uma gangue roubou gado e ovelhas de fazendeiros da região, e um grupo de vigilantes se mobilizou para perseguir os homens, o que terminou em troca de tiros.

Segundo Igwe, mais de 20 governos do norte do país são hoje controlados por grupos insurgentes. "Tecnicamente, não podem ser tidos como território nigeriano, e a pergunta que fica é como participarão das eleições", afirma o pesquisador, que se divide entre Abuja e Londres.

"Isso significa que a luta contra a insegurança não tem sido bem-sucedida; por isso tantos nigerianos estão perguntando o que os atuais candidatos farão de diferente", completa. Em geral, os postulantes propõem aumentar o efetivo policial, algo que Igwe e Hassan dizem que já se revelou pouco eficaz.

A violência generalizada leva ainda a um êxodo crescente na Nigéria, hoje o sexto país mais populoso do mundo, com 223,8 milhões de pessoas. Segundo o Acnur, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados, há ao menos 400 mil refugiados nigerianos em todo o mundo, especialmente em países como os vizinhos Níger e Camarões. Há, ainda, 3,1 milhões de deslocados internos por conflitos.

A migração nigeriana também é expressiva para o Brasil. Dados obtidos pela Folha junto ao Ministério da Justiça mostram que, nos últimos dez anos, ao menos 2.244 nigerianos solicitaram refúgio no país —sendo, assim, a oitava nacionalidade com mais pedidos, atrás de Venezuela, Haiti, Cuba, Angola, China, Bangladesh e Senegal. Em 2022, foram 513 solicitações de nigerianos, maior cifra da série histórica.

Tido como o pleito mais importante da história recente da Nigéria, as atuais eleições são marcadas também por uma fatia da população que vai às urnas com a esperança de resgatar a democracia.

Hoje o país é considerado por institutos como o sueco V-Dem uma autocracia eleitoral —tem eleições multipartidárias, mas fica aquém em outros pilares da democracia. Desde 2015, indicadores importantes como presença de eleições limpas, liberdade de associação para partidos e ONGs, liberdade de expressão e disponibilidade de fontes alternativas de informação vêm sendo limitados no gigante africano.

A corrupção também é expressiva. No mais recente Índice de Percepção da Corrupção, lançado pela ONG Transparência Internacional em janeiro, o país aparece com pontuação 24 —quanto mais perto de 0, pior, e quanto mais perto de 100, melhor. Assim, a Nigéria está na posição 150 em uma lista que classifica 180 nações, da menos corrupta, Dinamarca, até a mais, Somália. O Brasil é o 94º.

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