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Migração forçada por crise do clima é preocupante, diz diretor de agência da ONU

Português António Vitorino tenta se reeleger em competição que tem candidata americana como principal concorrente

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São Paulo

Quando António Vitorino foi eleito para dirigir a agência de migrações da ONU, a OIM, em 2018, iniciou-se uma ruptura na hegemonia dos EUA na organização. Sob uma onda de repúdio às políticas adotadas pelo então presidente Donald Trump, o português venceu e viu o candidato americano ser preterido.

Agora, o ex-ministro da Defesa do governo luso tenta se reeleger e, para tal, fez um recente giro pela América Latina, que incluiu o Brasil. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tende a ficar ao seu lado na disputa contra Amy Pope, a candidata de Joe Biden ao cargo.

O diretor-geral da Organização Internacional para Migrações, o português António Vitorino, discursa em evento em Bruxelas
O diretor-geral da Organização Internacional para Migrações, o português António Vitorino, discursa em evento em Bruxelas - John Thys - 29.out.19/AFP

Com elogios ao retorno brasileiro ao Pacto Global de Migrações, fórum menosprezado por Jair Bolsonaro (PL), Vitorino, 66, diz que o Brasil pode usar a Operação Acolhida, voltada para venezuelanos no Norte, como modelo para abrigar, por exemplo, afegãos que fogem do Talibã.

Ele também chama a atenção para a emergência das migrações motivadas pelas mudanças climáticas. Somente em 2021, segundo dados da OIM, o Brasil teve 411 mil pessoas deslocadas devido a enchentes, a maioria no estado da Bahia e no mês de dezembro.

O diretor da Organização Internacional para Migrações falou com a Folha por videochamada quando esteve no Brasil, em janeiro. Depois, respondeu a mais um conjunto de questões por email. Vitorino, no entanto, não respondeu a perguntas sobre como vê a possibilidade de uma representante americana voltar à chefia da OIM, tampouco sobre a relevância de um lusófono ocupar o cargo.

Sua eleição em 2018 e, agora, a tentativa de reeleição denotam a empreitada bem-sucedida de Portugal e, de certo modo, da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) na diplomacia —o secretário-geral da ONU, António Guterres, também é português.

Sobre as recentes políticas migratórias adotadas por Biden, diz que a expulsão de migrantes para o México pressiona as comunidades da fronteira e cria uma espécie de "pessoas bloqueadas".

Lula assume com muitos desafios na área da migração e do refúgio. O que o Brasil deve fazer para substituir uma política de governos, temporária, por uma política consistente? A primeira resposta já foi dada pelo presidente Lula com a decisão de regressar ao Pacto Global de Migrações da ONU. É um sinal político muito importante. Nenhum país isoladamente é capaz de enfrentar os desafios que as migrações atuais colocam a todos os Estados. Na nossa avaliação, a lei brasileira é uma excelente base para uma política de migração.

Ainda que tenhamos uma lei elogiada internacionalmente, os desafios são muitos, em especial na acolhida, como ficou evidente com as cenas de centenas de afegãos no Aeroporto de Guarulhos. O Brasil teve uma política de vistos humanitários muito generosa. No sentido da integração, o país tem uma experiência que pode ser fonte de inspiração para aplicar em outros casos, como o de afegãos: a Operação Acolhida com refugiados e migrantes venezuelanos.

Estamos em Roraima para a primeira assistência humanitária às pessoas que chegam à fronteira em condições extremamente difíceis, depois procedemos ao registro e à avaliação médica e, então, há a fase essencial da interiorização —a decisão voluntária de refugiados e migrantes de ir para outros estados brasileiros, com acesso ao mercado de trabalho para os adultos e escolarização para as crianças.

Movimentos migratórios na América Latina estão ligados a países que faliram suas democracias, como Venezuela, Cuba, El Salvador, Nicarágua. O senhor vê uma relação direta entre migração, refúgio e autocracias? Não há uma única causa para a migração, normalmente as causas interagem entre si: a pobreza, a desigualdade, a corrupção, a falta de segurança e, cada vez mais, doenças e as alterações climáticas. Eventos extremos, como tempestades, secas e inundações, alteram ecossistemas onde as pessoas vivem e, assim, suas condições de vida, especialmente nas áreas rurais.

Em 2021, no Brasil, 500 mil pessoas foram forçadas a se deslocar por tempestades, um número enorme. Essas pessoas muitas vezes precisam de apoio imediato e também é preciso assegurar que, ao se deslocar para outro destino, ali encontrem perspectivas de vida futura.

Na última década, houve no mundo uma média anual de 21 milhões de pessoas obrigadas a sair dos lugares onde viviam por situações extremas climáticas e, hoje, já há mais pessoas em movimento forçado devido à crise do clima do que em razão de conflitos.

Qual tipo de política devemos começar a implementar para ajudar os migrantes climáticos e impedir uma onda tão grande de migração? É preciso colocar o dedo na ferida. A migração tem de ser a última solução. É preciso atuar preventivamente. Sabemos perfeitamente quais são as zonas mais vulneráveis. No Brasil, todo o Nordeste é uma zona em risco.

Temos que trabalhar para que as próprias comunidades se adaptem e construam resiliência para resistir aos impactos das alterações climáticas. Intensificar produções agrícolas adaptadas às novas condições, por exemplo. Além de sistemas de captação de água para produção agrícola e sobrevivência humana. Nos casos em que as pessoas já não podem continuar ali, é preciso criar as condições para que elas reconstruam suas vidas nos lugares para os quais se deslocam.

O senhor comenta sobre a exploração agrícola que acaba com os meios de sustento das famílias e acelera a migração. No Brasil, temos desafios com o agronegócio em larga escala. Combater o desmatamento é central. É do interesse do Brasil e da humanidade. Vemos que as alterações climáticas estão produzindo um movimento de urbanização acelerada, e as cidades não estão preparadas para receber todas essas pessoas que deixam as zonas rurais.

O que pensa das políticas que Joe Biden tem adotado para a área de migração? Cada país é livre para decidir sua política de migração. No caso dos EUA, as últimas medidas têm dimensões distintas: por um lado, há uma cota para entrada de 30 mil pessoas por mês e, por outro, uma política de retorno daqueles que não houvessem pedido o ingresso pela via indicada.

Nessa segunda vertente, as pessoas que são mandadas de volta dos EUA ao México muitas vezes ficam nas zonas de fronteira do lado mexicano exercendo pressão sobre as comunidades locais e os serviços públicos. A OIM está fazendo um trabalho para primeiro dar abrigo a essas pessoas que estão, digamos, bloqueadas. Nessas situações há sempre risco de exploração, tráfico humano e violência de gênero.

Quais êxitos destacaria de seu atual mandato? Quais medidas gostaria de ter desenvolvido mas não puderam ser concluídas? Quando fui eleito, em 2018, estava ciente de que a organização vivia um ponto de inflexão, com crescente reconhecimento pelos Estados-membros da importância do tema das migrações —que necessitava de uma liderança forte aliada a uma resposta coordenada e bem gerida.

Temos liderado uma série de reformas institucionais e processos de inovação para fortalecer nossa capacidade de resposta. Alocamos US$ 34 milhões para fortalecer nossa capacidade de governança interna. Também embarcamos em um processo de reforma orçamentária que foi concluído em 2022, permitindo o crescimento do orçamento central da OIM graças ao apoio de Estados-membros.

A organização também cresceu em número de funcionários, área operacional e capacidade operacional desde 2018. A OIM é a única agência da ONU que se expandiu significativamente em todas essas áreas durante a pandemia da Covid-19.

Estamos particularmente orgulhosos de vir coordenando, a pedido do secretário-geral da ONU, a Rede de Migrações, que resultou em uma Declaração de Progresso que oferece aos Estados e a todos os parceiros um caminho comum para avançar na governança da migração.

A OIM nunca teve uma mulher na diretoria-geral. Uma das minhas maiores prioridades tem sido assegurar a paridade de gênero e capacitar os funcionários em todos os níveis, fornecendo-lhes ferramentas para desbloquear seu potencial e capacitando-os a avançar e desenvolver suas habilidades.

De acordo com a avaliação da ONU Mulheres, a OIM alcançou a paridade de gênero em todos os níveis, especificamente na gerência sênior. Estou determinado a continuar desenvolvendo e expandindo essas melhorias e investindo em nossos funcionários, que compõem o pilar fundamental da OIM.


Raio-X | António Vitorino, 66

Decano da política de Portugal, foi eleito para o Parlamento em 1980. Atuou, entre outros cargos, como vice-secretário do governador de Macau, juiz da Corte Constitucional, e ministro quando António Guterres, hoje secretário-geral da ONU, era premiê.

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