Descrição de chapéu The New York Times

Eleições na Espanha podem frustrar resgate de memória das vítimas do franquismo

Parentes temem que vitória da direta leve a suspensão de exumação de corpos de executados pela ditadura

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Constant Méheut
Granada (Espanha) | The New York Times

Quando Ángela Raya Fernández descobriu um projeto para identificar os restos mortais de vítimas da Guerra Civil espanhola –incluindo, possivelmente, os de seu avô—, ficou cheia de esperança.

Desde a infância, ela tinha ouvido histórias sobre como o pai de seu pai, José Raya Hurtado, foi executado durante a guerra por forças leais ao general Francisco Franco, e o corpo dele, jogado em um barranco.

Ángela só o conheceu por meio de fotografias em preto e branco.

Descendentes de vítimas da ditadura de Francisco Franco exibem fotografias de seus parentes em cemitério onde 2.200 pessoas foram enterradas, em Paterna, na Espanha
Descendentes de vítimas da ditadura de Francisco Franco exibem fotografias de seus parentes em cemitério onde 2.200 pessoas foram enterradas, em Paterna, na Espanha - Samuel Aranda - 26.jun.23/The New York Times

"Durante anos, mantivemos a esperança de que alguém o encontrasse e que, assim, déssemos a ele um enterro digno", diz Ángela, 62, uma bibliotecária. Mas com a previsão de uma vitória da direita nas eleições gerais marcadas para o próximo domingo (23), ela e sua família, junto com milhares de outras pessoas, receiam que os anos de esforços para encontrar os restos de seus entes queridos cheguem ao fim.

O Partido Popular (PP), legenda conservadora cuja origem remonta ao franquismo, prometeu que, se eleito, revogará uma lei promulgada no ano passado pelo atual premiê, o socialista Pedro Sánchez, com a finalidade de acelerar as exumações. Uma aliança possível entre os conservadores e o partido de ultradireita Vox, que há anos se opõe às tentativas de abordar os crimes da ditadura, intensificou esses receios. "Seria uma catástrofe", afirma Ángela. "Um retrocesso enorme."

As idas e vindas acerca da lei refletem como os traumas da Guerra Civil espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939, e a subsequente ditadura de Franco, encerrada com a morte dele, em 1975, ainda dividem o país.

Para alguns, Franco consolidou o crescimento econômico do país no pós-guerra e o protegeu do comunismo. Para muitos outros, o regime foi opressor, marcado por execuções em massa, o exílio de milhares e o sequestro de crianças. Estima-se que 100 mil pessoas foram executadas por partidários de Franco durante e após a Guerra Civil, enterradas em 2.000 valas comuns espalhadas pelo território.

Em um país onde o legado de Franco foi abafado por muitos anos, ninguém ousava abrir essas valas comuns. Conservadores argumentam que o único efeito das exumações é reabrir feridas antigas.

Mas, para a esquerda, esse silêncio é tudo menos terapêutico –pelo contrário, é exasperante. Durante a ditadura, os espanhóis eram proibidos de falar das execuções. Uma lei de anistia aprovada em 1977 visava a pôr um ponto final nos crimes do passado, mas, na prática, fez do esquecimento uma parte crucial do esforço para curar as feridas de uma nação dividida que vivia uma transição democrática.

"Foi uma cultura do silêncio", diz Agustín Gómez Jiménez, 49, que trabalha na área da saúde. Ele contou que durante anos seu pai se recusou até mesmo a mostrar a ele uma foto do avô, executado em 1936.

Foi só quando sua irmã vasculhou objetos deixados pelo pai que eles enfim encontraram alguns retratos. Um deles mostra o avô de Gómez Jiménez numa praia, de mãos dadas com o filhinho que pouco tempo depois viraria órfão. "Fico arrepiado só de pensar no meu pai escondendo as fotos", diz Gómez Jiménez. "Ele ficou profundamente traumatizado."

Os primeiros esforços para lidar com as valas comuns datam de 2007, quando o então premiê, José Luis Rodríguez Zapatero, de centro-esquerda, aprovou uma lei de memória que aumentava o apoio do governo às exumações. Mas a legislação demorou para valer, e quando o Partido Popular chegou ao poder, em 2011, os conservadores fizeram questão de cancelar as verbas que pagariam pelas exumações.

Foi necessária mais uma década, o engajamento de regiões do país controladas pela esquerda e a lei implementada no ano passado –que criou um censo e um banco nacional de DNA para ajudar a localizar e identificar os restos mortais dos mortos pela ditadura— para que o movimento ganhasse ímpeto.

Esses esforços ficam evidentes em Viznar, vilarejo situado nas montanhas próximas a Granada. Um time de arqueólogos vem escavando o barranco em que os avôs de Ángela e de Jiménez foram enterrados com cerca de 280 outros corpos —um deles possivelmente pertence ao poeta Federico García Lorca.

Um porta-voz do PP afirmou que as exumações podem continuar após as eleições, dizendo que as famílias espanholas "têm o direito de recuperar os corpos de seus entes queridos". Mas muitas delas dizem se lembrar de como o ex-premiê Mariano Rajoy, conservador, gabou-se de ter reduzido a zero o financiamento público para a lei de memória de 2007.

A possibilidade de uma aliança nacional entre o PP e o Vox –que, segundo indicam as pesquisas, seria a única maneira de a direita obter maioria no Parlamento— veio exacerbar esses receios.

Nas últimas semanas, famílias de vítimas da ditadura acompanham ansiosamente as ações de coalizões formadas entre os dois partidos após as eleições regionais de maio. Quase todas elas têm planos para silenciar seus projetos relacionados à memória.

"O governo central é nossa última esperança, nosso Álamo", diz Matías Alonso Blasco, em referência à fortaleza massacrada por tropas mexicanas quando o Texas se tornou independente e se anexou aos EUA. "Se ele cair, estará tudo acabado", prossegue ele, que representa famílias na região de Valencia.

A localidade passou recentemente a ser governada pela direita, que anunciou a revogação das "normas que atacam a reconciliação em questões históricas". Muitos interpretaram isso como uma alusão à lei de memória local, promulgada em 2017, que ajudou a possibilitar que dois terços das 600 valas comuns da região fossem escavados.

Tradução de Clara Allain

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