Ressentimento por massacre de 1943 atravessa recepção de ucranianos na Polônia

Nacionalistas mataram cerca de 11 mil poloneses em um único dia durante Genocídio de Volhinia, que completa 80 anos

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Andrew Higgins
Slupice (Polônia) | The New York Times

Em um vilarejo rural com menos de 500 habitantes, os forasteiros se destacam. Até mesmo Anna Osinska, uma moradora de 93 anos com deficiência visual, percebeu quando pessoas que ela não reconhecia –refugiados da Guerra da Ucrânia– começaram a aparecer na rua estreita diante da janela de sua cozinha.

Ela mesma uma ex-refugiada, Osinska sentiu pena dos ucranianos e ficou feliz por seu país estar fazendo o possível para ajudá-los. Mas também lutou contra emoções menos generosas.

"Graças a Deus não sinto nenhuma necessidade de vingança", disse ela, lembrando como, em 1943, fugiu da casa onde cresceu, em antigas terras polonesas no oeste da Ucrânia, depois que nacionalistas do país vizinho atacaram a vila de sua família, massacrando a maioria dos seus 160 habitantes.

Riszard Marcinkowski, filho de um sobrevivente do massacre em Volhinia, em um monumento em homenagem às vítimas de 1943
Riszard Marcinkowski, filho de um sobrevivente do massacre em Volhinia, em um monumento em homenagem às vítimas de 1943 - Maciek Nabrdalik - 18.fev.23/The New York Times

Os assassinatos em Niemilia, a vila de Osinska que não existe mais, foram episódios horríveis que a Ucrânia chama de Tragédia de Volhinia, e a Polônia, de Genocídio de Volhinia. Nesses assassinatos étnicos promovidos por nacionalistas ucranianos, mais de 60 mil poloneses, muitos dos quais mulheres e crianças, foram mortos.

Ligados pela hostilidade contra as ambições imperiais da Rússia e pela determinação a resistir ao ataque militar ordenado pelo presidente Vladimir Putin, a Polônia e a Ucrânia também compartilham passados dolorosamente intricados. A carnificina de 1943, fonte de tensão há décadas, agora é um episódio de importância urgente, já que completa 80 anos nesta terça-feira (11).

A Polônia se irrita com a glorificação da Ucrânia aos nacionalistas dos tempos de guerra responsáveis pelo massacre, mas, cautelosa em apoiar a visão russa do país vizinho como um ninho de fascistas sedentos de sangue, a nação pediu "reconciliação e perdão".

Esse foi o tema de uma celebração na semana passada na Catedral de Varsóvia, com a presença de padres de ambos os países. No domingo (9), os presidentes Andrzej Duda, da Polônia, e Volodimir Zelenski, da Ucrânia, visitaram uma igreja em Lutsk, no oeste ucraniano, para lembrar o massacre. Os gabinetes das duas partes postaram fotos da cerimônia no Twitter, usando a mesma linguagem para homenagear as vítimas.

Osinska, que foi reassentada quando adolescente após a Segunda Guerra Mundial no sudoeste da Polônia, junto com dezenas de milhares de outros refugiados poloneses, cresceu numa comunidade traumatizada pelos massacres de 1943 e fervendo de ódio contra os ucranianos.

Ela ainda se ressente de que eles "não demonstrem remorso" e não esqueceu os gritos frenéticos de "matem os poloneses, matem os poloneses" que ecoaram em sua aldeia natal quando ela tinha 13 anos.

Acompanhada em maio por seu filho e por idosos que viveram o mesmo trauma, ela colocou flores num memorial de mármore com a inscrição: "Não esqueceremos nossos parentes assassinados porque eram poloneses durante a guerra de nacionalistas ucranianos".

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Anna Osinska, sobrevivente dos assassinatos de 1943, em sua casa em Slupice, na Polônia - Maciek Nabrdalik - 17.fev.23/The New York Times

Os ucranianos "fizeram coisas terríveis conosco", disse Osinska durante uma entrevista em sua cozinha na vila de Slupice, mas os descendentes "não podem ser culpados pelo que seus pais e avós fizeram" e merecem ajuda em sua luta contra a Rússia. "Minhas opiniões sobre os ucranianos mudaram lentamente."

Sua mudança de opinião, embora limitada por um trauma pessoal, destaca como a Rússia lutou para derrotar a Ucrânia não apenas no campo de batalha, mas em um de seus campos de combate favoritos e mais vantajosos –as guerras de memória. Esse é um conflito que está acostumada a vencer devido aos milhões de russos que morreram lutando contra a Alemanha nazista.

Moscou iniciou sua invasão em grande escala da Ucrânia em fevereiro de 2022 com um arsenal bem abastecido de histórias em grande medida falsificadas por Putin, mas, em parte, verdadeiras. O estoque inclui relatos horríveis dos massacres de Volhinia realizados por seguidores de Stepan Bandera, líder de uma facção particularmente brutal da Organização dos Nacionalistas Ucranianos.

Autoridades e historiadores poloneses expressaram frustração com o que consideram a recusa da Ucrânia a reconhecer e expiar totalmente os pecados dos militantes leais a Bandera, que foi assassinado por agentes soviéticos em 1959. Ele é reverenciado por muitos ucranianos hoje como um herói nacional –ou festejado alegremente como uma curiosidade folclórica inofensiva. Na Polônia e na Rússia, porém, é insultado como um fascista e colaborador nazista.

Lukasz Jasina, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Polônia, disse a um jornal local em maio que, embora Zelenski "tenha muitas outras coisas em mente no momento", a Ucrânia precisava se desculpar pelos massacres de 1943, que descreveu como "um tema muito importante a ser enfrentado".

Em vez de um pedido de desculpas, a Polônia recebeu uma repreensão do embaixador da Ucrânia em Varsóvia, Vasil Zvaritch. Em um post no Twitter que depois apagou, o diplomata rejeitou o que chamou de demandas "inaceitáveis e infelizes" e afirmou que os ucranianos "lembram da história e pedem respeito e equilíbrio nas declarações, especialmente na difícil realidade da agressão russa genocida".

Nacionalistas ucranianos, disse Damian Markowski, historiador polonês e autor do livro "A Sombra de Volhinia", cometeram "crimes horríveis" durante a Segunda Guerra Mundial contra os poloneses que viviam na Ucrânia, cenário de combates sangrentos entre nazistas e soldados soviéticos.

Mas, acrescentou, acontecimentos como aquele já haviam acontecido em escala muito maior em razão da polícia secreta de Moscou, pioneira em assassinatos baseados em etnia durante o Grande Terror de Josef Stálin, em 1937 e 1938. Naqueles anos, houve uma campanha de "liquidação total" contra poloneses rotulados falsamente como espiões. Algumas vítimas foram selecionadas em listas telefônicas devido a seus nomes que soavam poloneses, e mais de 120 mil foram mortos.

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Projeto de arquivo em Wroclaw, na Polônia, compara desenhos feitos por crianças polonesas em 1946 com desenhos contemporâneos feitos por crianças ucranianas que vivem a guerra - Maciek Nabrdalik - 18.fev.23/The New York Times

Já em 1940, os assassinos de Stálin mataram mais de 20 mil poloneses, despejando seus corpos na floresta de Katin, uma atrocidade sobre a qual Moscou mentiu por décadas e só reconheceu em 1990.

O esforço para limpar Volhinia de poloneses, algo que os nacionalistas ucranianos viam como uma condição essencial para o estabelecimento de um Estado independente, atingiu seu auge em 11 de julho de 1943, um domingo. Naquele dia, o Exército Insurgente Ucraniano lançou um ataque coordenado a 90 assentamentos, matando cerca de 11 mil pessoas em um único dia. O dia foi escolhido, segundo Markowski, porque "eles sabiam que muitas pessoas estariam na igreja".

A aldeia de Osinska foi atacada algumas semanas antes, em 27 de maio. Ela se lembra vividamente da noite de luar. Cães começaram a latir, e seu pai, temendo um ataque de militantes ucranianos após o assassinato e a mutilação de um amigo dias antes, levou a família a um campo próximo para se abrigar.

Ela se lembra de ter rasgado o vestido ao se rastejar no meio do trigo enquanto os vizinhos gritavam. "Eles queriam matar todos nós", disse ela, "só porque éramos poloneses".

Quando ela e sua família retornaram brevemente no dia seguinte, descobriram que a vila tinha sido incendiada e estava repleta de corpos de amigos e parentes. "Lembro-me de uma tia, com a cabeça aberta e com insetos pretos rastejando em seu rosto", lembrou ela.

Com sua casa incinerada e o vilarejo cheio de saqueadores ucranianos e seus ajudantes alemães nazistas, Osinska e sua família fugiram a pé e depois de trem. Eles enfim chegaram a Varsóvia quando a guerra estava terminando. De lá, foram enviados para o antigo território alemão ao redor da cidade de Wroclaw, no sudoeste, que havia sido doada à Polônia em compensação pelas terras perdidas no leste.

"Todos nós desejávamos voltar para Volhinia", disse ela. "Foi só nisso que pensamos durante muitos anos." Mas sua antiga casa, expurgada dos moradores poloneses remanescentes ao cair firmemente sob o domínio de Moscou após a guerra como parte da Ucrânia soviética, estava fora de alcance.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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