Biden não conseguiu deter inimigos dos EUA e do Ocidente, diz Niall Ferguson

Historiador diz que eleitores americanos não deveriam escolher entre atual presidente e Donald Trump nas eleições

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Washington

Para o historiador escocês Niall Ferguson, os Estados Unidos se colocaram em uma situação difícil neste ano: escolher entre Joe Biden e Donald Trump.

Nenhum dos dois deveria ser presidente em 2025, afirma o escocês, que faz uma avaliação especialmente ruim da política externa do democrata. "Ele não conseguiu realmente deter os talibãs, não conseguiu deter [Vladimir] Putin, não conseguiu deter o Irã, e pode não conseguir deter a China", afirma, em entrevista à Folha.

O historiador Niall Ferguson durante painel no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, em janeiro de 2023 - Greg Beadl - 17.jan.2023/Fórum Econômico Mundial

Em dezembro, foi lançada no Brasil pelo selo Crítica da editora Planeta a versão em português do primeiro volume da biografia "Kissinger 1923 – 1968: o idealista" (1.008 págs., R$ 229,90). A obra, originalmente publicada em 2016, foi feita a pedido do próprio diplomata, morto em novembro, que deu ao historiador acesso a um farto material, como cartas e diários, até então desconhecidos do público.

Henry Kissinger também deu diversas entrevistas a Ferguson, e os dois construíram uma relação próxima ao longo dos anos —o diplomata chegou a ir ao casamento do historiador, em 2011.

Embora o primeiro volume da biografia termine no momento em que Richard Nixon convida o então acadêmico para ser seu conselheiro de segurança nacional, Ferguson faz uma longa defesa de seu biografado no início do livro e atribui a muitos de seus críticos motivações outras, como inveja e antissemitismo.

Ferguson segue trabalhando no segundo volume da biografia, ainda não lançado.

A Casa Branca demorou horas para se manifestar sobre a morte [de Kissinger]. Em uma entrevista em 2022, ele diz que Biden não o havia recebido, como outros presidentes fizeram. Como era a relação dos dois?
Não acho que foi uma relação próxima. Claro, eles eram contemporâneos e se conheciam há muitas décadas, mas quando Biden estava no Senado, ele não era particularmente simpático a Kissinger.

Eu não tenho conhecimento de que Biden o tenha consultado, mas isso não significa que Kissinger estivesse fora do circuito. Ele estava aconselhando de perto tanto o conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, quanto o Secretário de Estado, Antony Blinken, em uma variedade de questões, China e Rússia em particular.

Kissinger disse que os EUA precisavam encontrar tanto "uma definição comum de nossos perigos quanto de nossas propostas" em sua política externa, como se isso faltasse a Biden. Quais eram esses perigos e propostas, na visão dele?
Sua maior preocupação era a relação EUA-China e o perigo de que ela se deteriorasse, potencialmente de uma guerra fria para uma ‘guerra quente’.

Em segundo lugar, ele temia que não tivéssemos uma estratégia coerente para encerrar a Guerra da Ucrânia de uma forma que fosse propícia à estabilidade a longo prazo no Leste Europeu. Em terceiro, ele estava muito preocupado com a inteligência artificial como uma tecnologia para a qual não tínhamos um plano real de regulamentação. Essas eram as grandes preocupações de seus últimos anos.

Os EUA vivem uma turbulência doméstica, que contamina sua política externa. Neste momento, não há dinheiro para financiar a Ucrânia devido à oposição republicana no Congresso. E, neste ano, haverá eleições. Como o senhor avalia esse cenário?
O governo Biden se saiu mal em deter os inimigos dos EUA e do Ocidente. Ele não conseguiu realmente deter os talibãs, não conseguiu deter [Vladimir] Putin, não conseguiu deter o Irã, e pode não conseguir deter a China.

A coisa mais importante que a política externa americana precisa fazer é melhorar na tarefa de deter os inimigos do Ocidente. Precisamos garantir que a Rússia não vença na Ucrânia, isso seria desastroso. Precisamos garantir que o Irã não vença contra Israel, precisamos ter certeza de que Taiwan não seja dominada pela China. Essas são as três questões principais.

Ao mesmo tempo, os EUA correm um risco político interno significativo, ao basicamente refazerem a eleição de 2020 [em 2024]. Atualmente, nenhum dos candidatos está, em minha opinião, preparado para ser presidente em 2025. Biden, porque está velho e eu acredito que deveria se aposentar. Trump, porque mostrou desprezo pela Constituição.

Os EUA criaram uma má escolha para si mesmos. Ainda não é tarde para que essa escolha mude, e espero que melhores candidatos estejam disponíveis até novembro.

Os obituários de Kissinger refletiram a ambiguidade de seu legado. Houve muitos elogios ao seu papel no século 20, mas também críticas, como o famoso título da Rolling Stone que o chamou de criminoso de guerra.
O debate sobre o papel dele está acontecendo há 50 anos. Havia críticas quando ele estava no governo. Ao longo do tempo, as críticas se tornaram menos rigorosas e mais exageradas.

Se adotarmos a abordagem histórica séria, veremos que todo conselheiro de segurança nacional e todo secretário de Estado durante e após a Guerra Fria teve que tomar decisões difíceis, geralmente entre males, e tentar escolher o mal menor. Não é como se Kissinger fosse o único secretário de Estado que lidou com ditadores, que aprovou bombardeios. Hillary Clinton lidou com ditadores e certamente aprovou bombardeios, mas, até onde sei, ninguém a acusou de ser uma criminosa de guerra.

Minha opinião é que ou todos são criminosos de guerra, ou estamos usando esse termo incorretamente. Precisamos ser consistentes em nossos julgamentos e reconhecer que, como Kissinger disse antes de se tornar conselheiro de segurança nacional, a maioria das escolhas de política externa são entre males. Não há necessariamente boas opções que não tenham custos.

Na biografia, o senhor argumenta que Kissinger era na verdade um idealista, não um realista. Mas se proteger a ordem internacional significava violar os direitos humanos e o direito internacional, como a intervenção no Chile, isso não é um paradoxo?
Acho que o idealismo de Kissinger tinha mais a ver com minimizar o risco de uma Terceira Guerra Mundial do que qualquer outra coisa. Mas ele também tinha uma hostilidade idealista ao comunismo por causa de seu histórico desrespeito aos direitos humanos.

Os direitos dos cidadãos em Cuba não foram muito protegidos desde a Revolução Cubana, e a política externa americana foi tentar evitar outras Cubas. O regime de [Salvador] Allende se parecia muito com outra Cuba. E certamente não era um regime que respeitava os direitos individuais econômicos e políticos.

Foi por isso que Nixon e Kissinger foram hostis a ele. Mas, lembre-se, eles não impediram Allende de se tornar presidente. As tentativas da CIA de fazer isso falharam. E eles não derrubaram Allende. Isso foi feito pelo Parlamento e pelo Exército chileno. O papel que os EUA desempenharam na queda de Allende foi bastante mínimo [outros historiadores apontam que os EUA apoiaram e fomentaram a oposição a Allende para desestabilizar seu governo]. Isso é algo que as pessoas esquecem. E Kissinger condenou os abusos dos direitos humanos pelo regime chileno quando foi a Santiago.

E em relação ao Camboja?
O argumento frequentemente apresentado aí é que Kissinger aprovou bombardeios e depois forças terrestres entrando no Camboja e que isso teve altos custos civis e depois levou ao colapso do governo e ao regime do Khmer Vermelho, que cometeu genocídio.

O problema com esse argumento é, em primeiro lugar, que foi o Vietnã do Norte que violou inicialmente a neutralidade do Camboja. Foi o Vietnã do Norte que estava usando o Camboja para organizar sua guerra contra o Vietnã do Sul, que os EUA estavam empenhados em vencer. E, portanto, os argumentos para a ação militar no Camboja eram perfeitamente válidos e do tipo que foram feitos desde o início dos tempos para evitar que um inimigo use um território neutro para abastecer e treinar suas forças.

Em segundo lugar, William Shawcross, que escreveu o livro "Sideshow", no qual esse argumento costuma se basear, ele próprio repudiou o livro e disse que na verdade as baixas civis causadas pelo bombardeio americano não foram tão grandes como ele havia dito anteriormente [as estimativas mais conservadores falam em ao menos 150 mil mortos].

Na época, a questão crítica era: você poderia impedir que o Vietnã do Norte vencesse a Guerra do Vietnã e impusesse o comunismo a todas as pessoas do Vietnã do Sul que não queriam ser governadas pelo Norte? E quanto aos direitos humanos deles? Ninguém faz essa pergunta.

Para o senhor, qual foi o maior arrependimento de Kissinger?
Lembro-me de ter feito essa pergunta a ele, e a resposta foi que ele não tinha arrependimentos. Se você ler suas memórias, há muitas ocasiões em que ele admite ter errado. Acho que você só pode se arrepender se achar que vai estar sempre certo.

Uma de suas grandes realizações foi colocar Israel e Egito no caminho da paz. Mas no Oriente Médio, acho que ele e seu sucesso nunca realmente resolveram o problema palestino. Ele me disse pouco antes de morrer que, refletindo sobre isso, teria sido melhor abordá-lo essencialmente como um problema jordaniano em vez de dar à Organização para a Libertação da Palestina um status no processo, que inevitavelmente fracassaria.

Então, houve questões específicas em que ele refletia sobre os erros cometidos. Ele não era alguém que fingia não ter cometido erros, mas ele não gostava da pergunta sobre arrependimentos.

Desde que Lula voltou à Presidência, ele retomou a aposta da política externa em várias alianças, especialmente com o Brics e o Sul Global, às vezes entrando em conflito com os EUA. Qual é a sua opinião sobre a estratégia do Brasil?
A ideia de que o Brasil deveria se alinhar com a China no Brics é uma má ideia. Entendo por que o presidente Lula falou nesses termos. Em parte, é seu antigo instinto de esquerda de ser antiamericano. Em parte, porque o Brasil tem interesses econômicos muito importantes no comércio com a China.

Mas acredito que, como democracia, o Brasil tem uma aliança natural com o Ocidente, com as outras democracias do mundo, e não com estados não democráticos como a China e a Rússia.

Acredito que seria melhor se o Brasil procurasse ao menos ser não alinhado em vez de alinhado com a China. O comércio com a China é uma coisa. Tornar-se parte da coalizão de iliberalismo da China é uma má ideia para o Brasil.


Raio-X | Niall Ferguson, 59

Historiador de origem escocesa, é professor do Centro Belfer de Ciência e Assuntos Internacionais da Universidade Harvard e pesquisador da Universidade Stanford. É autor de 16 livros, entre eles "A ascensão do dinheiro: A história financeira do mundo" e "Catástrofe", e colunista. Ferguson também fundou e comanda a consultoria Greenmantle LLC.

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