Nunca foi tão perceptível a lição de Sérgio Buarque de Holanda sobre os problemas que envolvem a relação entre sociedade e Estado no Brasil.
Na clássica obra “Raízes do Brasil”, ele investiga as origens de uma forma de sociabilidade brasileira em que predominam os contatos informais em detrimento das esferas públicas.
A lógica da família patriarcal, com seus vínculos biológicos e afetivos e vontades caprichosas e despóticas, passou da sociedade à esfera política.
Mas o Estado não é uma ampliação do círculo familiar, diz o autor. É ordem de diferente essência que se instala pela transgressão da ordem doméstica.
O lento processo de estabelecimento do Estado no Brasil, sob critérios opostos aos padrões impregnados na sociedade, acarreta um conflito entre os dois modelos.
Tal conflito, latente, aflorou com o atual governo federal, não como expressão do patrimonialismo, mas do prevalecimento da vontade de grupos que rejeitam a sociedade aberta do mundo globalizado.
A introdução de visões particulares na gestão da coisa pública por meio de discursos sobre família, Deus, igrejas e costumes tradicionais, calcados em vínculos afetivos e pessoais, atenta contra o Estado laico em que todos os brasileiros são iguais e titulares de direitos humanos.
A linguagem dos agentes públicos e de pessoas a eles ligados por laços pessoais demonstra que estamos diante de uma apropriação do Estado por grupos privados, em nível que não ocorrera nem mesmo nos períodos em que prevaleceram caprichos de ditadores e violência estatal.
São exemplos da referida apropriação a demissão do ministro da Secretária-Geral da Presidência da República por atritos com um dos filhos do presidente, que não ocupa cargo na administração federal, e a tentativa do MEC de impor a leitura nas escolas de uma carta do ministro contendo slogan de campanha eleitoral que reflete valores religiosos.
O recente episódio de revogação envolvendo a especialista em segurança pública Ilona Zsabó, um dia depois de ter sido nomeada para integrar o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, expõe melhor ainda a delicada situação. O ministro da Justiça, que dizia ter carta branca para a formulação de políticas de combate ao crime, rendeu-se a ataques de apoiadores do governo nas redes sociais porque a nomeada seria “antiarmamentista”. Os filhos do presidente comemoraram não apenas o recuo acerca da nomeação de Ilona, mas também a saída do conselho, em solidariedade a ela, de outro especialista no tema, Renato Sérgio de Lima.
Assim se trata a coisa pública no Brasil de hoje.
No episódio que culminou com a demissão do ministro foi divulgada conversa por WhatsApp em que o presidente da República se queixa de ter sido recebido no Planalto um representante da “inimiga” Rede Globo e que não ficaria bem se as outras redes —“amigas”, supõe-se— soubessem.
Ora, então a instituição Presidência da República tem inimigos? Pode discriminar este ou aquele jornalista ou órgão de imprensa? Estamos mesmo numa República?
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