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Larissa de Freitas Flosi

Deve ser garantida a gestantes a possibilidade de optar pela cesárea no SUS? Não

Autonomia sem escolhas

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Larissa de Freitas Flosi

Uma conhecida deputada estadual de São Paulo fez da cesariana sua principal bandeira política. Sua intenção declarada é a de levar a mulheres desprivilegiadas a mesma autonomia de que outras desfrutam no atendimento privado, além de resguardá-las de risco que associa ao parto normal e de uma suposta “obstinação” por praticá-lo. A preocupação seria louvável, não fossem falsas as premissas que a motivam.

Sob a ótica da medicina, a cesárea é um procedimento obstétrico, designada para ser realizada apenas em situações de risco. No Brasil, porém, essa via de parto responde por 55% do total de nascimentos, na contramão do que declara a OMS, cuja recomendação é a de que essa taxa não supere 20%. Se há “obstinação”, ela não está refletida nas estatísticas.

A restrição da cesariana aos casos em que se mostre necessária tem base em extensa e consolidada literatura, que demonstra que tal cirurgia, quando prescindível, pode agregar riscos para gestante e bebê. Evidências contundentes, por outro lado, demonstram que a cesariana não protege recém-nascidos de paralisia cerebral, mau desfecho cuja gênese a deputada atribui ao parto normal. 

Menos de 10% dos casos de paralisia cerebral tem algum fator causal no parto em si, por qualquer das vias. Na maioria das vezes, as causas são outras, como a prematuridade ou mesmo doenças genéticas. O argumento de que a cesárea visa proteger de desfechos ruins, portanto, não encontra eco nas ciências médicas.

Projeto de lei da deputada Janaina Paschoal (PSL-SP) quer garantir à gestante a opção pela césarea no SUS
Projeto de lei da deputada Janaina Paschoal (PSL-SP) quer garantir à gestante a opção pela césarea no SUS - Adobe Stock

Resta a autonomia. Segundo o estudo Nascer no Brasil (2014), 70% das brasileiras gostariam de ter um parto normal, mas poucas o realizam. Na rede pública, as cesáreas respondem por 46% do total de nascimentos. No setor privado, inacreditáveis 88%. 

As mulheres são desencorajadas da intenção inicial de realizar um parto normal, seja público ou privado o atendimento prestado. O que explica essa redução estatística se há uma agenda ideológica que busca subjugar escolhas, por imposição infundada de um único modo de trazer um filho ao mundo?
Em verdade, mulheres são levadas a mudar de ideia porque não encontram assistência adequada ao parto normal em nenhuma das redes. 

De um lado, faltam assistência pré-natal adequada e acesso à analgesia de parto, sobretudo na rede pública. 

De outro, médicos se distanciam de evidências científicas e não respeitam nem encorajam a mulher na sua escolha, corroborados por um sistema de saúde pautado em interesses econômicos. Desincentivos que não terão remédio na cesárea, que aliás depende de complexa e custosa estrutura, sabidamente deficitária no SUS. 

Só há autonomia se a manifestação de vontade for livre e informada. Inexistindo garantia de cuidado e assistência digna, nenhuma mulher estará em condições de exercer sua autonomia, seja qual for o seu desejo. Cesáreas, nesse cenário catastrófico, encobrem o real problema da falta de tratamento mais humano que deveria ser dispensado a todas as mulheres.

A deputada e seus fervorosos asseclas fazem truques de ilusionismo: porque não sabem lidar com a verdade, procuram desvirtuar argumentos e desqualificar adversários. Em vão. A recomendação do parto normal encontra sólido esteio na melhor literatura médica, nas organizações internacionais e nos dados estatísticos da ampla maioria dos países desenvolvidos.

Lamentavelmente, a discussão de uma questão tão cara a toda a sociedade é posta em segundo plano para que prevaleçam interesses privados, de classe e pretensões políticas de perpetuação no poder.

Larissa de Freitas Flosi

Médica obstetra do Coletivo Nascer e representante da pauta no Sindicato dos Médicos de São Paulo

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