Em 15 de julho, o embaixador da Turquia no Brasil publicou artigo nesta Folha em que repete a cantilena do governo de Recep Tayyip Erdogan sobre o movimento Hizmet, liderado pelo clérigo Fethullah Gulen, principal alvo da onda repressiva desencadeada pelo presidente turco depois da mal explicada tentativa de golpe de 15 de julho de 2016.
Segundo a versão do homem forte da Turquia, Gulen teria tramado a sua derrubada do poder, o que é refutado pelo clérigo auto-exilado nos Estados Unidos e jamais foi comprovado. No artigo, o embaixador Murat Yavuz Ates faz acusação ainda mais grave e estapafúrdia: diz que o clérigo seria líder de uma organização terrorista e alerta para a presença de membros do Hizmet no Brasil.
Como integrantes do conselho consultivo de uma entidade cultural originalmente vinculada ao Hizmet, o Centro Cultural Brasil-Turquia, hoje Instituto pelo Diálogo Intercultural, não podemos silenciar diante das inverdades do embaixador turco. É mais uma investida contra a liberdade de pacíficos cidadãos turcos que aqui residem e trabalham. O objetivo maior é arrancar do Brasil membros do Hizmet, extraditando-os para a Turquia.
Ao início de 2019 isso quase aconteceu. Não fosse a pronta reação de democratas brasileiros, de diversos segmentos da sociedade, entre os quais o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, líderes religiosos, gestores culturais e acadêmicos, e a postura correta do STF, este teria sido o destino de Ali Sipahi.
Dono de restaurante de comida turca em São Paulo, pai de crianças nascidas no Brasil, brasileiro naturalizado, ele passou mais de um mês detido na Polícia Federal em São Paulo. Em junho, todos os membros da Segunda Turma do STF votaram pela recusa da extradição. De que crime era acusado? Ter depositado o equivalente a R$ 1.500 em sua conta-corrente em um banco privado na Turquia, cujos sócios tinham vínculos com o Hizmet. O banco atuava no país com milhares de correntistas, como qualquer outro banco privado.
Para entender por que a máquina estatal turca foi posta a serviço da perseguição de um cidadão comum como Ali, é preciso retroceder um pouco na história.
Entre 2002 e 2013, sob a liderança de Erdogan, a Turquia despontou como exemplo raro de um país de maioria muçulmana, democrático, com Estado laico e plena liberdade religiosa. Nesse período, o então primeiro-ministro contou com o apoio do Hizmet. Ao final de 2013, Erdogan rompeu com o movimento e passou a persegui-lo, acusando-o de estar por trás de investigações da polícia e do Judiciário sobre esquemas de corrupção envolvendo vários ministros de seu governo e dirigentes de seu partido (as investigações apontavam para o envolvimento da própria família do então primeiro-ministro).
Seu governo deu ali a guinada rumo a um autoritarismo crescente, na política e na religião, em sentido contrário aos valores defendidos por Gulen. O fracassado golpe de Estado de quatro anos atrás é um capítulo decisivo dessa história.
Sobre quem e quantos estiveram por trás dos episódios de 15 de julho de 2016, há muitas perguntas e poucas respostas seguras. Uma coisa, porém, é certa: a tentativa de golpe serviu como pretexto para que Erdogan acionasse todos os instrumentos do Estado para destruir o Hizmet.
Os números falam por si: mais de 500 mil pessoas foram detidas, 30 mil foram presas, entre elas mais de 200 jornalistas, e 2.700 instituições foram fechadas —sendo 1.200 escolas e 20 universidades. Mais de 6.000 acadêmicos e 427 mil funcionários públicos foram dispensados e 234 mil passaportes, cancelados.
Para estigmatizar o Hizmet, o governo de Erdogan inventou a sigla FETÖ , iniciais na língua turca para Fetullah Terrorist Organization. Dessa maneira, imaginava persuadir governos estrangeiros, em especial no Ocidente, a apoiar a cruzada contra o movimento liderado por Gulen. Fake news da pior espécie.
Mais que um artigo, este texto é um testemunho do nosso apreço pelas pessoas e pelo trabalho dos membros do Hizmet no Brasil. Com eles, cultivamos o valor do diálogo intercultural e religioso, de que o Brasil e o mundo tanto precisam.
Sergio Fausto
Cientista político, é superintendente da Fundação Fernando Henrique Cardoso
Clarita Costa Maia
Consultora legislativa do Senado Federal, advogada e presidente da Comissão de Migrações e Comércio Exterior da OAB-DF
Ana Helena Curti
Curadora de artes, presidente da Arte3 e professora de artes plásticas na Faap
Ana Carla Fonseca Reis
Profissional de referência em economia criativa, cidades criativas e negócios criativos
Antônio Carlos de Morais Sartini
Curador, advogado e administrador cultural, foi primeiro diretor do Museu da Língua Portuguesa
Claudia Toni
Especialista em políticas públicas para a área cultural, curadora do Festival Sesc de Música de Câmara e assessora da Reitoria da USP
Cris Olivieri
Advogada na área de consultoria para cultura, comunicação e entretenimento
Daniela Alves
Diretora-executiva na Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI), professora titular do curso de Relações Internacionais do IBMEC-SP
Leda Catunda
Artista plástica, pintora, escultora, artista gráfica e professora universitária
Abdul Nasser Haikal
Pesquisador, historiador e jornalista
* Todos são membros do Conselho Consultivo do Instituto pelo Diálogo Intercultural, antigo Centro Cultural Brasil-Turquia, entidade inspirada no Movimento Hizmet
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