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Antônio Marcos Capobianco

Litoral norte paulista e a ameaça de 'passar a boiada'

Plano Diretor pode ser a porteira para adensamento e verticalização em São Sebastião

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Antônio Marcos Capobianco

Sociólogo, é pesquisador na área dos direitos sociais e difusos; foi vice-Presidente do Comitê das Bacias Hidrográficas do Litoral Norte e da Federação Pró-Costa Atlântica

O maciço da serra do Mar (SP), à medida que se estende do sul para o norte, vai se aproximando da costa. E é em São Sebastião que a planície marinha vai ficando mais estreita, inclusive com longo trecho alcantilado.

Dentre os 280 municípios litorâneos brasileiros, é o campeão nacional da vulnerabilidade aos males da verticalização predial e do adensamento que vem na sua esteira. Trata-se de um território inadequado à ocupação intensiva por suas características fisiográficas e geomorfológicas, solo frágil (aluvional hidromórfico), lençóis aflorantes e problemas de drenagem. Há, ainda, sérias dificuldades para a deposição final do lixo e para sistemas de água e esgoto, já deficientes.

Os rios, de pequena extensão, têm baixa capacidade de autodepuração em face do esgoto, de modo que o adensamento populacional, a exigir maiores estruturas de tratamento, faria carrear para as praias os nocivos subprodutos da desinfecção (trihalometanos). Resultado: areia infecta, um mar de clorofórmio, ruína socioeconômica, míngua da pesca. Deseconomias de aglomeração advêm também do incremento do tráfego no afunilado viário. Como pontificou o papa Francisco em sua encíclica "Laudato Si' - Sobre o Cuidado da Casa Comum": “Não é conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos em cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contato físico com a natureza”.

Leis de uso e ocupação do solo devem balizar o direito de construir. Estão sob permanente assédio, mas a pressão maior para o seu afrouxamento é via Plano Diretor (PD) de São Sebastião. Pode ser a grande porteira para “passar a boiada”, como diria o ministro do Meio Ambiente. Nas audiências públicas do atual e dos PDs anteriores, o tom da sociedade civil tem sido o mesmo: repúdio ao aumento da altura das construções e do Coeficiente de Aproveitamento (CA).

O atual projeto teve sua votação impedida por liminar por não integrar propostas da população contrárias ao aumento do CA, que facilita a verticalização e a quebra do atual gabarito de 9 metros, coluna mestra da sustentabilidade ambiental e do encanto local. Noutras ocasiões alertamos sobre a sanha verticalizadora na imprensa local, na regional e nesta Folha (Litoral norte pode morrer na praia”; “O Ministério Público e o litoral norte”; “Vista para o mar”).

O afrouxamento da lei teria outra funesta finalidade: uma anistia branca das ilicitudes afetas à atual legislação de uso do solo. Por oportuno, reproduzo a citação que fiz (revista Saneamento Ambiental, nº 23) do então procurador-geral da República Claudio Fonteles: “Que o MP saia da clausura em que se viu enfiado, como mais um estamento burocrático do Estado para... participar com as entidades não governamentais da afirmação de va­lores compatíveis com a sociedade justa e fraterna… Guardião dos direitos coletivos, da própria de­mocracia”.

Entretanto, pasmo geral, o próprio Ministério Público indeferiu a citada liminar, afirmando que “...o CA básico e verticalização dos imóveis... [a] competência para definição e regulamentação... é exclusiva da Casa Legislativa". Felizmente, a Justiça, em irrefragável contradita, barrou a votação e, apontando vício de inconstitucionalidade, balizou: “...o CA básico e a verticalização dos imóveis não se trata de mérito legislativo do qual a Câmara Municipal tem poder soberano. É de rigor a participação popular no processo legislativo, nos termos do artigo 180, inciso II, da Carta paulista, a qual somente poderia ser exercida pela via democrática direta e não pela representativa”.

Vale dizer, o debate nas audiências públicas não é mero teatro democrático. Ainda bem: caso contrário, no futuro, ante os escombros mefíticos do que foi um lugar paradisíaco, serão eternizados na história nomes de prefeitos, vereadores e quem mais, por via omissiva/comissiva, afiançou a catástrofe. Entretanto, em 2 de fevereiro outro magistrado anulou a liminar e, em 25 de maio, 8 dos 11 vereadores aprovaram o Plano Diretor, que já foi sancionado pelo prefeito Felipe Augusto (PSDB).

A mata atlântica foi tom­bada pela Unesco como reserva da biosfera e declarada patrimônio nacional, assim como a serra do Mar e a zona costeira: “… sua utilização se fará na forma da lei, den­tro de condições que assegurem a preserva­ção do meio ambiente… (art. 225, § 4º)". Também podem virar letra morta pelo conluio político/privado o Estatuto da Cidade, a Constituição paulista, o de­creto que criou o Parque Estadual da Serra do Mar, a resolução estadual do Tombamento da Serra do Mar, o Código Florestal, a Política Nacional de Meio Ambiente e a própria lei nº 7.347/85, da Ação Civil Pública.

Restaram o recurso ao Tribunal de Justiça de São Paulo e, agora, uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) para que a tutela do patrimônio ambiental e a da ordem urbanística não passem a ser apenas figuras de retórica sob os cascos da boiada.

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