Descrição de chapéu
Natália Silva

Privilégio negro

Risério expressa desejo ressentido de poder ocupar um lugar que não é seu

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Natália Silva

Repórter da editoria de Podcasts da Folha

"Se você tivesse que nascer outra vez, você gostaria de vir como?". Foi essa a pergunta feita pela atriz e apresentadora Taís Araújo a Xuxa Meneghel em uma edição do programa Superbonita, no canal GNT. "Taís, eu queria vir com a tua cor, o teu cabelo, a tua pele", respondeu a loira à negra. Antes mesmo de Xuxa concluir o raciocínio, Taís soltou um riso nervoso e disparou que não era fácil. "Quer mesmo?"

Quando este trecho do programa começou a circular nas redes sociais, soltei o mesmo riso nervoso e pensei: se Taís me fizesse a mesma pergunta um dia, eu diria que gostaria de nascer um homem branco, rico e num país de primeiro mundo. Eu, ao contrário de Xuxa, sei o que é reservado àqueles que nascem com uma pele um pouco mais escura ou muito mais escura num país chamado Brasil.

O antropólogo Antonio Risério - Zanone Fraissat - 2.jul.15/Folhapress

A única experiência exclusiva que a quantidade extra de melanina na nossa pele nos oferece é saber o que é racismo na prática. Não acho que Xuxa tenha inveja disso, mas há quem tenha. É o caso de Antonio Risério, autor do artigo "Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo", publicado nesta Folha.

Risério diz que o "racismo negro é um fato". Para provar seu ponto, o autor cita supostos episódios de violência de pessoas negras contra pessoas não negras.

Não há ninguém dos movimentos negros afirmando que pessoas negras são incapazes de ser hostis e violentas. Como seres humanos, somos capazes de sentir e de agir como outros de nossa espécie, mas o nome disso não é racismo. Racismo pressupõe poder, e o poder está na mão de pessoas brancas. Portanto, não há racismo negro —mas isso é óbvio.

O que não é tão óbvio no texto de Risério são as motivações. Seria um caso de inveja? Apesar da vastidão da língua portuguesa, o autor parece sentir uma necessidade de roubar para si uma palavra que não cabe no contexto em que ele quer usá-la. O antropólogo parece ser movido pelo mesmo sentimento que levou Xuxa a confessar que gostaria de ser negra: um desejo de poder ocupar um lugar que não é seu. A resposta da apresentadora pode ser inocente, mas o texto de Risério não é.

Há um ressentimento profundo escondido por trás de palavras como "neorracismo" e "identitarismo", usadas para descrever um mundo em que a palavra de acadêmicos brancos não é mais vista como lei, mas como um ponto de vista passível de questionamento. Um mundo em que, cada vez mais, pessoas negras podem ocupar os bancos das mesmas universidades e as páginas dos mesmos jornais antes reservados àqueles com menos melanina no corpo.

Risério disfarça sua inveja em um texto que seria melhor aproveitado em uma sessão de terapia. A despeito de malabarismos retóricos, praticar racismo segue sendo um privilégio branco.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.