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José Antonio G. de Pinho

O voto útil favorece o processo democrático? NÃO

Forma acomodada de não fazer política; afinal, eleição tem dois turnos

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José Antonio G. de Pinho

Doutor em planejamento regional (London School of Economics), é professor titular aposentado da Escola de Administração da UFBA e pesquisador da FGV-Eaesp

Elaborando uma breve taxonomia do chamado voto útil, tem-se que é acionado na reta final de uma campanha eleitoral, quando o candidato no topo das pesquisas necessita de uma parcela mínima de votos para vencer a eleição já no primeiro turno. Um segundo caso seria quando o segundo e o terceiro colocados estão disputando renhidamente a ida para o segundo turno.

O voto útil pode ser pensado como uma relação política, sem forma contratual —para não falar de uma relação de mercado entre um comprador e um vendedor de votos. No cenário brasileiro, o apoio "útil" a um candidato acaba revertendo em participação no governo, ou seja, ocupação de cargos.

Os principais candidatos à Presidência da República no debate da TV Globo - REUTERS

Se a base do acordo fosse em cima de componentes ideológicos, ele teria sido lavrado ao início da corrida eleitoral. Esse tipo de acordo de última hora ainda teria um agravante, pois, dada a necessidade do "comprador" e a urgência da entrega, o preço sofreria uma elevação pelas regras de "mercado".

Em casos de partidos de aluguel, o voto útil não causaria crises existenciais e éticas. Um voto útil institucional, digamos assim, viria da desistência de um candidato e de seu partido, o que conferiria maior lisura na negociação.

Seja como for, o modelo parece uma forma acomodada de fazer política ao não buscar os votos de indecisos, brancos e nulos. O mais direto e lógico é contrapor o útil ao inútil. O voto é entendido como útil por quem o demanda, e seria inútil para quem abre mão dele.

A razão é bem pragmática e justificada no argumento: você vai perder seu voto, seu candidato será derrotado. Do ponto de vista ético, a pressão sobre partidos e candidatos nessa situação pode ser vista, até certo ponto, como uma agressão à democracia, embora não exista penalização.

Tomando a política como uma atividade séria e nobre, a eleição é seu momento culminante de confronto das diversas propostas. É um trabalho longo que pode durar anos, tempo de costurar alianças, submeter nomes, fazer concessões. Todo esse esforço seria sugado pela propaganda do voto útil, organizada pelo partido líder e seu candidato, situação que ainda se agrava quando o ataque é feito com achincalhes ao partido/candidato-alvo.

Outro componente a ser considerado é que uma parte do eleitorado se define na reta final, até no dia do pleito. O voto útil não estaria respeitando essa situação. Há também um campo para surpresas de última hora, considerando também os votos "envergonhados".

Olhando a situação concreta destas eleições, a demanda por voto útil recai sobre dois candidatos: Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB), sendo o primeiro o alvo preferencial.

Encerrando esta breve reflexão, a presente situação no Brasil inspira preocupação, pois um dos candidatos conspira abertamente contra a democracia com insinuações frequentes de golpe. Nesse caso, entendemos que a responsabilidade por qualquer desvio democrático não pode ser jogada em cima de candidatos que teriam que ceder seus votos.

A contenção dos arroubos autoritários de Jair Bolsonaro (PL) compete às instituições democráticas e organizações da sociedade civil. Deve ser considerado ainda que as forças que requisitam o voto útil (Luiz Inácio Lula da Silva e PT), ainda que tenham uma diferença substancial em relação as que cultivam um golpe, podem não ser vistas como merecedores dessa transposição de votos. É para isso que existe a eleição em dois turnos.

Parece que vivemos um paradoxo. Lutamos tanto pelo alargamento da democracia e vem a proposta do voto útil, que soa como um encolhimento desta ao restringir os direitos de escolha do eleitorado. Com a palavra, o eleitorado brasileiro. E a sociedade e as instituições para reprimir agressões antidemocráticas.

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