O artigo 1.641, inciso II, do Código Civil (CC), impõe o regime da separação legal ou obrigatória de bens aos que contraírem o casamento com mais de 70 anos, com o presumido intuito de tutelar o idoso contra o chamado "golpe do baú" —expressão que frequenta o imaginário popular diante de relacionamentos conjugais entre pessoas com grande disparidade de idade.
Nesses casos, não pode o casal eleger, por pacto antenupcial, qualquer outro regime de bens e, casados sob tal regime (o da separação obrigatória) e em caso de morte de qualquer um deles, o sobrevivente não dividirá a herança com os filhos do falecido.
Há quem enxergue nessa regra um caráter discriminatório e atentatório à dignidade dos cônjuges septuagenários, sendo, por isso, inconstitucional. Afirma-se que a separação de bens etária é preconceituosa quanto às pessoas idosas, que passam a ser tratadas como se fossem incapazes no que tange à gestão do seu próprio patrimônio. A discussão chegou agora ao Supremo Tribunal Federal, que vai decidir sobre a constitucionalidade do artigo 1.641, II, considerando o respeito à autonomia e à dignidade humana e a vedação à discriminação contra idosos.
Entretanto não vejo, no comando legal, tratamento discriminatório, muito menos atentado à dignidade da pessoa humana.
O regime da separação obrigatória é exceção, prevista em lei, ao princípio da liberdade dos pactos antenupciais, perdendo os noivos a liberdade de escolha do regime de bens que comandará as suas relações patrimoniais na vigência do matrimônio. Trata-se de uma limitação parcial da autonomia privada, que precisa ser compreendida dentro de um contexto mais amplo de proteção patrimonial a determinadas pessoas especialmente eleitas pelo legislador.
Essas pessoas, a quem a lei quis proteger, mantêm o pleno poder de disposição em relação a todo o seu acervo patrimonial, apesar de proibidas de contratar um regime de bens diverso da separação. Mas não estão impedidas de gerir os seus bens, nem de deles dispor, a título gratuito ou oneroso, inclusive a favor do cônjuge ou companheiro.
Logo, a imposição do regime não priva o cônjuge septuagenário de contemplar o outro mais jovem com parcelas do seu patrimônio, por doação ou testamento, se assim o desejar —o que significa dizer que a obrigatoriedade do regime representa, na prática, mínima intervenção na autonomia privada, inapta a justificar uma pretensa inconstitucionalidade por infração à cláusula da dignidade.
Se é certo que a pessoa da melhor idade pode casar-se com quem bem entender, é inegável que ela também pode, não obstante casada sob o regime da separação obrigatória, dar aos seus bens o destino que melhor lhe aprouver —observadas, apenas, as balizas sucessórias quanto a eventuais herdeiros necessários. Mantêm os nubentes septuagenários a plena capacidade para dispor de seu patrimônio, ainda que não tenham podido eleger outro regime de bens.
Para encerrar a discussão, cabe lembrar o teor da velha súmula 377, do STF, ainda vigente e segundo a qual "no regime da separação legal comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento".
Em outras palavras, mesmo que se discuta a necessidade ou não de prova do esforço comum como pressuposto para a comunicação dos bens, o fato é que a jurisprudência já flexibilizou de tal forma o regime da separação obrigatória a ponto de quase transformá-lo em uma comunhão parcial, o que afasta por completo a mais leve ranhura à dignidade da pessoa maior de 70 anos, inexistindo, assim, qualquer inconstitucionalidade no inciso II do artigo 1.641 do Código Civil.
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