Descrição de chapéu
Rossano Lopes Bastos e Cinthia Gomes

Próxima estação: Saracura Vai-Vai

Negro, o Bexiga é o nosso chão; e essa é a nossa história!

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rossano Lopes Bastos

Arqueólogo, é doutor e livre-docente em arqueologia brasileira; membro da Rede de Arqueologia Negra e do Icomos/Unesco

Cinthia Gomes

Jornalista, é mestre em ciências (ECA-USP); integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial, da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e do Movimento Saracura Vai-Vai

Frequentemente lembrado pelas cantinas e festas típicas, o bairro do Bexiga —um pedaço da Bela Vista, na região central de São Paulo— tem uma outra história, bem anterior à ocupação italiana. A presença do Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Vai-Vai há mais de 90 anos no bairro é um forte indício daquilo que já sabíamos: o Bexiga é negro!

Durante anos, os integrantes se reuniam em locais emprestados e guardavam instrumentos na casa dos diretores. Em 1969, o Vai-Vai conquistou sua primeira sede, na rua 14 de Julho, da qual foi despejado apenas três anos depois para a construção do Minhocão (elevado Presidente João Goulart). De lá, foi para a rua São Vicente, onde permaneceu por 50 anos, até a mais recente desapropriação.

Obras da linha 6-laranja do metrô de São Paulo, durante anúncio de cronograma de escavação - Rivaldo Gomes - 21.jul.22/Folhapress

Como diria o jornalista, escritor e ex-ritmista Oswaldo Faustino, a história do Vai-Vai se confunde com a história da cidade: os negros são sempre afastados em nome do "progresso" e da modernização. Agora, para a construção de uma estação da linha 6-laranja do metrô. Por isso, foi com alegria —e nenhuma surpresa— que recebemos a notícia de achados arqueológicos no local, que nos permitem recontar a história do Quilombo da Saracura.

Localizado às margens do rio Saracura (que foi soterrado para a construção da avenida 9 de Julho), o quilombo, durante o século 19, era lugar de ressignificação da vida, da existência e, especialmente, da liberdade para a população negra. Ocupação e tradições que foram mantidas pela presença negra no bairro, com os indesejados cortiços, terreiros, rodas de samba e de capoeira e, sobretudo, trabalhadores que ajudaram a construir essa cidade. História constantemente invisibilizada pela especulação imobiliária e pelas narrativas que valorizam unicamente as imigrações europeias e asiáticas na formação da capital paulista.

O Bexiga como território negro explicita uma cidade formada de diversas referências culturais e um bairro multifacetado e plural. A cidade na sua formação arqueológica preserva seus extratos componenciais, que denunciam as diversas tentativas de apagamento das referências culturais da resistência negra. Disputas e convivências deixam suas marcas em toda a paisagem.

Dentro dessa perspectiva, o movimento Saracura Vai-Vai se reveste de um significado especial nas lutas que ocupam a cidade. A partir de uma demanda legal, legítima e ética, nos relembra que este lugar tem história, tem arqueologia, tem pertencimento e deve ser respeitado.

É fundamental que os agentes públicos e privados envolvidos acolham as demandas que vem desse movimento, constituído por moradores, pesquisadores, ativistas e parlamentares negros e aliados: mudança do nome do sítio arqueológico registrado como Saracura/14 Bis para Quilombo da Saracura; elaboração de um programa de educação patrimonial; criação de um museu que abrigue as peças encontradas e conte a história negra do bairro do Bexiga; mudança do nome da estação 14 Bis para estação Saracura Vai-Vai. O Bexiga é nosso chão, e essa é a nossa história!

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.