Descrição de chapéu
Otelo Rigato Junior

Colegas médicos se esqueceram do que testemunharam?

Hipócrates certamente votaria 'não' a quem promulgou o morticínio da Covid

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Otelo Rigato Junior

Doutor em infectologia (Unifesp), é médico infectologista

O "pai da medicina" não foi um homem comum. Sábio, transformou a medicina numa ciência e amarrou o ato médico a princípios humanistas a que hoje chamamos "ética médica".

Em breve resumo, Hipócrates erigiu os dois alicerces fundamentais da profissão médica: ciência e empatia. Passados 2.500 anos, essa grave distopia política acabou por estremecer tais alicerces, com a tentativa de banalização dos princípios básicos da medicina protagonizada por quem despreza tudo o que a humanidade conquistou, tijolo por tijolo, nessas dezenas de milhares de anos. Para eles, nem ciência, nem empatia.

O presidente Jair Bolsonaro retira a máscara de uma criança, contrariando os protocolos sanitários, enquanto discursava em evento no Rio Grande do Norte, em 2021 - @Barreto269 no Twitter

A pandemia, no Brasil, foi uma tragédia absoluta. E disso falo com legitimidade, pois trabalhei, como muitos de meus colegas, em todas as frentes de batalha, públicas ou privadas, ao longo de todo o período em que o coronavírus destroçou a vida e a alegria de muitas famílias brasileiras. No momento mais agudo, os médicos envolvidos no atendimento pareciam unânimes em reprovar (usando um termo muito eufemístico) as ações do governo federal, que talvez possam ser mais bem definidas como inações ou "contra-ações".

E, disso, não sou eu o porta-voz. Basta vermos o relatório final da CPI da Covid e o indiciamento do presidente da República: prevaricação; charlatanismo; epidemia com resultado "morte"; infração a medidas sanitárias preventivas; emprego irregular de verbas públicas; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crimes de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo); crimes contra a humanidade (nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos).

Estávamos todos em uníssono no protesto e na estupefação com que víamos a atitude do Executivo, sobretudo na gestão criminosa da saúde a cargo de um general limítrofe. Atrás das cortinas, um nauseabundo grupo de maus médicos e de falsos médicos, mais preocupados em tirar proveito da tragédia e ganhar projeção para uma futura candidatura eleitoral, aconselhava nefastamente os malfeitores em ação.

O câncer federal se disseminava amplamente: falsificação de dados; imposição de tratamentos sem eficácia; negligência voluntária na compra de vacinas que finalmente viriam a nos dar mais segurança no combate ao vírus; incúria nos estoques de oxigênio em cidades mais severamente afetadas. Como se não bastasse tanta malignidade, fez-se campanha para o boicote ao uso de máscara e ao isolamento social, fundamentais naquele momento em que as UTIs estavam lotadas.

O que vimos foi um verdadeiro morticínio: jovens, idosos, pais e mães, crianças e os próprios médicos que não tiveram a vacina para protegê-los. De forma muito triste, perdi alguns amigos que trabalhavam na linha de frente, mais jovens e mais saudáveis do que eu.

Mas o conservadorismo sempre preponderou no ambiente médico. Agora que o pior passou, vejo que muitos colegas mudaram o discurso. Parece que se esqueceram do que testemunharam —ou mesmo que não viveram o terrível momento. Esqueceram-se do desprezo à ciência e à razão. Como se fosse possível não se lembrar de uma ferida incurável e intratável em sua dor profunda. Como se valores humanos não fizessem parte do nosso juramento. Como se a empatia não fizesse parte do tratamento. Ou como se fosse perdoável apoiar um mandante que fere o código de ética ao defender a tortura, o racismo, o supremacismo —apoio esse em defesa de um conservadorismo que, em sua essência, não passa de individualismo, e em sua existência, uma cegueira voluntária. Em definitivo, Hipócrates votaria "não"!

Enfim, compreendo que o conservadorismo faça parte do jogo político e que todo cidadão é livre para a ele alinhar-se. Mas, como médico, não vejo como relevar a falta de empatia e a negação da ciência ao escolher um candidato, mesmo que ele seja o candidato conservador da vez. Não haverá nada a conservar quando se apagarem as luzes de todo um país.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.