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Michel Schlesinger

O voto judaico (parte 2)

Devemos privilegiar candidatos que condenem qualquer violação dos direitos humanos

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Michel Schlesinger

Bacharel em direito (USP), é rabino da Congregação Etz Chaim ("Árvore da Vida"), em Nova York, e professor do Seminário Teológico Judaico de Manhattan

Em 2018, às vésperas daquelas eleições, publiquei um artigo nesta Folha em que apresentei os valores que deveriam estar refletidos naquilo que intitulei "O voto judaico" (1º/10/18). Passados quatro anos, às vésperas das votações que decidirão o futuro líder do país, repenso quais são as prioridades que vejo, à luz dos valores que encontro em minha tradição religiosa e em minha formação acadêmica, serem essenciais nos candidatos e que me ajudam a decidir em quem, eu mesmo, voto.

Entre 2018 e 2022, muita coisa aconteceu no mundo. Uma pandemia devastadora aprofundou as desigualdades sociais; novas guerras eclodiram e testemunhamos a emergência de governos com ímpetos totalitários.

O rabino Michel Schlesinger - Mathilde Missioneiro - 5.fev.20/Folhapress

Infelizmente, na época em que vivemos, política virou palavra feia e políticos, sinônimo de ausência de compromisso ético. Essa aversão ao mundo político, a meu ver, provoca um distanciamento do cidadão das decisões que precisam ser tomadas na escolha de nossos representantes. Índices altíssimos de abstenção nas votações brasileiras no primeiro turno apontam para esse diagnóstico e, como consequência, enfraquecem a democracia, num contexto em que ela já está sendo colocada em cheque por muitos candidatos por meio da sua recusa em aceitar resultados de passadas ou futuras votações. Vemos esse fenômeno no Brasil, mas também nos Estados Unidos, onde muitos candidatos afirmam não aceitar o resultado de eleições passadas. A democracia baseia-se em aceitar que alguns candidatos saem vitoriosos e outros, perdedores.

Se já não bastasse esse ataque a essas bases democráticas, temos visto uma antiga característica da democracia, que pode se tornar devastadora quando em ambientes de tendência antidemocrática: a possibilidade de elegermos, democraticamente, líderes que agem contra a própria democracia. Lembremo-nos de que Hitler foi eleito democraticamente, embora essa comparação não represente nenhuma forma de manifestação que venha a negar a singularidade da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto.

Em relação aos altos índices de abstenção das votações, trago da minha tradição judaica a obrigação de não se abster como um estímulo para participarmos da vida política, com toda a sua complexidade. A abstenção no voto não é a postura indicada pelo judaísmo, em nenhum cenário que seja. Abster-se, anular ou votar em branco significa se eximir do dever de assumir responsabilidade perante o futuro da nossa sociedade e deixar a solução nas mãos de outrem. Sermos cidadãos politizados é um valor judaico. Quem não exerce seu dever de votar, incorre no pecado da omissão.

Uma vez tomada a decisão de votar, precisamos decidir qual seria o candidato ideal. Nossa história milenar nos ensinou a apreciar diretrizes que contribuíram com o desenvolvimento livre de nossa comunidade e a consequente participação na sociedade maior. O estado laico é, sem dúvida, um desses valores que assegurou a liberdade de judeus e judias desde a Revolução Francesa em diversas sociedades em que vivemos. A democracia foi incorporada desde muito cedo na tomada de decisões da comunidade judaica. Aliás, a própria noção de comunidade exige mecanismos para determinar a vontade da maioria e a busca de caminhos para que essa vontade seja atendida.

A sobrevivência do povo judeu, quando em comparação a extintos impérios, deveu-se, em grande medida, à tomada de decisões de maneira colegiada. Quando aperfeiçoamos os mecanismos de debate e escuta, nossas decisões tendem à razoabilidade. Por isso, a manutenção da independência dos Poderes e o respeito ao reconhecidamente eficiente processo eleitoral são condições essenciais para o contínuo amadurecimento de um sistema democrático capaz de atender à vontade da maioria, resguardando os direitos das minorias.

Outro princípio defendido de maneira consistente pela tradição judaica é a defesa dos direitos humanos. O Pirkei Avót, conjunto de regulamentos morais redigidos há 2.000 anos, questiona: "Im Ani LeAtzmí, Ma Aní". "Se eu cuidar apenas de mim, o que serei eu?". O voto judaico deve privilegiar candidatos capazes de condenar enfaticamente qualquer violação dos direitos humanos no Brasil e no mundo. O pluralismo religioso e étnico precisa ser valorizado em uma sociedade, sem espaço para racismo, antissemitismo, islamofobia, homofobia, misoginia, perseguição a cristão ou a religiões de matriz africana ou qualquer outra forma de discriminação.

Constatamos a verdadeira obsessão que carregou a tradição judaica na direção da construção de uma sociedade equilibrada e justa. O princípio de justiça social, tradução mais fiel do termo "tsedacá", ganhou mecanismos sofisticados ao longo dos milênios da existência judaica. O voto judaico deveria privilegiar pessoas capazes de desenvolver políticas públicas que protejam a margem mais débil da sociedade e não reforcem mecanismos assistencialistas. Educação e saúde precisam ser universalmente acessíveis para todas as camadas da população.

O desenvolvimento sustentável é também um valor a ser perseguido. Segundo o mito judaico-cristão da criação do universo, Deus teria criado o mundo e delegado a sua administração aos homens e mulheres. Segundo a narrativa bíblica, somos convocados, a um só tempo, a preservar a criação e desfrutar dela. Assim, desde os primórdios da humanidade, a noção de um aproveitamento consciente e planejado dos recursos naturais estava lançada. Em nossos dias, com o desenvolvimento da tecnologia, este equilíbrio é tão mais possível quanto absolutamente necessário. A proteção aos grupos autóctones, habitantes das florestas ou dos centros urbanos, é parte essencial do desenvolvimento sustentável da nossa sociedade.

Finalmente, a conversa entre religião e ciência permite que o obscurantismo de outrora seja substituído por uma fé esclarecida. Se, no passado, a religião serviu para explicar o funcionamento do universo, hoje a ciência desempenha este papel de maneira muito mais sistemática e bem-sucedida. Cabe a nós a coragem de compreender que o papel da religião mudou. Essa mudança traz a oportunidade de uma experiência religiosa que não mais precisa dar respostas superficiais e definitivas aos anseios humanos, mas inspirar a humanidade na busca de uma vida mais significativa e ética, relegando aos cientistas as decisões dos caminhos a serem percorridos.

O desânimo com as eleições que se aproximam é grande. Os sucessivos ataques à democracia nos preocupam de sobremaneira. Os escândalos de corrupção nos assustam. Ainda assim, gostaria de buscar no judaísmo inspiração para seguirmos participando dos destinos do Brasil.

A tradição judaica que sigo é profundamente marcada pela pluralidade de posições. Essa prática, que se distancia das fake news e se baseia no direito de divergir dentro das regras previamente estabelecidas de debate, nos aponta para os princípios que podem nortear nosso voto em um cenário complexo como este que se apresenta.

Como líder religioso, decidi me abster de revelar quais são meus candidatos. Não considero honesto, da minha parte, dizer aos meus congregantes em quem eu penso que eles devem votar. Sinto-me na obrigação, no entanto, de revelar quais os valores que encontro na minha tradição religiosa e que me ajudam a decidir coerente e racionalmente os meus próprios candidatos.

Os líderes que elegemos apontam para qual será a temperatura ética de uma sociedade. Que escolhamos um caminho nutrido de valores de ética e de justiça que meu judaísmo me inspira a seguir.

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