Graça é uma mãe que trabalha como faxineira diarista. Em um almoço, conversávamos sobre trabalho e família, e Graça desabafou que a grande limitação para conseguir um emprego estável era não ter alguém para ficar com sua filha pequena.
Perguntei se ela tinha tentado vaga em creche pública, ao que ela me respondeu: "Sim, no ano passado minha filha era número 20 da fila, mas neste ano ela foi para 60". Enquanto eu refletia sobre o enigma da fila que anda para trás, Graça emendou: "Acho que eu também vou procurar o Ministério Público". Ela já tinha entendido que quem pede vaga via Justiça tem prioridade.
Essa conversa me marcou. Primeiro, ficou muito concreto que decisões judiciais alocativas de recursos escassos possuem ganhadores e perdedores. Segundo, ficou claro que a decisão judicial foi normalizada como determinante para se receber uma vaga, prevalecendo sobre critérios como ordem de chegada ou vulnerabilidade social.
Lembrei dessa conversa ao estudar a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que firmou a tese de que a educação infantil —que inclui creche e pré-escola —é um direito fundamental subjetivo e que indivíduos podem demandar judicialmente a oferta imediata de vaga pelo poder público.
Os ministros entenderam se tratar de uma escolha entre, de um lado, proteger as finanças públicas e, de outro, proteger o direito à educação. Colocada dessa maneira, a resposta é quase óbvia: pouca coisa é mais importante do que a educação de uma criança e a autonomia da mulher (que frequentemente é responsável por cuidar dos filhos), o que a creche proporciona.
Porém, como diz o ditado inglês: "a pergunta errada só pode gerar a resposta errada". A questão real não é se o acesso a creche é um direito fundamental de primeira importância ou se é um bom investimento público (claro que é), mas se ordens judiciais para obrigar a matrícula de uma criança são o meio adequado para promover esse direito.
A rigor, um município não precisa abrir mais vaga para atender uma decisão judicial: basta fazer a fila andar para trás, como Graça a duras penas aprendeu. Não é orçamento versus direitos, mas o direito de quem entra pela via judicial versus o mesmo direito de quem receberia a vaga se a fila seguisse seu curso.
Seria possível argumentar que ações individuais forçam o aumento do total de vagas. Porém, não houve esforço do STF em mostrar que essa judicialização realmente altera os incentivos e constrangimentos existentes para esse aumento. Mesmo se isso fosse demonstrado, existe ainda o ônus de justificar que aumentar vagas no longo prazo compensa a injustiça na sua distribuição hoje.
A decisão do Supremo tem importância simbólica e sinaliza para outros atores da sociedade. Porém, não basta que uma corte afirme princípios. Ela precisa considerar se a proteção do direito de quem chega à Justiça não prejudica a política pública que realiza o direito para a coletividade. Existe um ônus, que não foi satisfeito pelo STF, de justificar sua decisão a Graça e a outras pessoas que têm a concretização de seus direitos obstaculizada por decisões judiciais.
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