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Bernardo Braga Pasqualette

Saiba perder, Bolsonaro!

Uma 'carta' do ex-presidente João Figueiredo ao colega de farda e atual incumbente

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Bernardo Braga Pasqualette

Advogado e jornalista, é autor de "Me Esqueçam" (ed. Record), sobre o ex-presidente João Figueiredo

Senhor presidente,

Quem lhe escreve é o João, companheiro de caserna. O senhor era paraquedista, eu fui cavalariano, mas isso pouco importa. O verde-oliva de nossa farda é um laço que sempre nos manterá unidos.

Escrevo-lhe para lhe contar o que eu vivi, um dia, em algum lugar do passado. Era madrugada de 15 de março de 1985. Já havia ido me recolher, certo de que cumpri o que havia prometido exatos seis anos antes: fazer novamente do Brasil uma democracia. Lá pelas tantas, fui despertado por um telefonema do jurista Leitão de Abreu, chefe do meu Gabinete Civil.

O presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), e o ex-presidente João Figueiredo - Reprodução e Roberto Stuckert

Acordei de mau humor, pois sempre detestei retornar à vigília em meio ao sono profundo. Foi o que de pior poderia ter me acontecido. Informado de que o presidente eleito, Tancredo Neves, estaria impedido de tomar posse na manhã seguinte, respondi com o fígado, fazendo algo que o meu coração intuía ser errado: "Não passo a faixa nem recebo o Sarney em palácio, essa hipótese está totalmente descartada".

Assim, faltei a cena final do meu governo, privando o povo brasileiro de um momento histórico: um militar devolvendo —simbolicamente— o poder a um civil. Detestava o Sarney desde o episódio das prévias do PDS, mas o tempo me fez ver que isso era uma picuinha menor. Restaurei a democracia, mas, apesar do meu pedido para ser esquecido, sempre serei lembrado pela minha ausência.

Também anistiei inimigos políticos, contudo hoje reconheço que fui incapaz de anistiar a mim mesmo. Leguei ao futuro e à minha própria biografia um vazio que manchou definitivamente a minha imagem. Jamais me perdoei por isso.

Por esse motivo, caro presidente, lhe escrevo. Creio que o meu aprendizado lhe pode ser útil. Assim, rememoro outro momento histórico da transição para a Nova República.

Era 15 de janeiro de 1985. Estava no Rio de Janeiro, pois padecia de dores na coluna. Ao ser proclamado o resultado do Colégio Eleitoral, liguei imediatamente para o Tancredo, para lhe felicitar. Da televisão, vi o povo brasileiro embaixo de uma grande bandeira do país, se abrigando da chuva e comemorando a vitória da oposição. Celebrava-se a nossa derrota, mas, confesso, que assim como todo o país que assistia à cena pela TV, também me emocionei naquele momento.

Da televisão, assisti a um último ato simbólico daquele dia, que passo a narrar ao senhor. Antes, porém, devo-lhe fazer uma advertência: sempre tive horror ao Maluf e, mesmo do lado de cá, a ojeriza permanece. Dito isso, devo reconhecer que ele teve uma atitude altiva após perder de forma avassaladora aquela eleição.

Altivez é que nem beleza: difícil descrever, mas, quando você bate o olho, reconhece de pronto. Ao caminhar pelo Congresso Nacional para abraçar o presidente eleito, Maluf legou ao futuro uma mensagem singela: após a eleição, vencedores e vencidos devem se unir pelo bem do nosso país.

O abraço que ele deu em Tancredo eu não pude dar, porque o presidente eleito estava acamado quando tentei visitá-lo na fatídica manhã da posse. Retornei ao palácio e fui embora por uma porta lateral. Hoje não tenho dúvida de que o correto era esperar o vice-presidente eleito —fosse ele quem fosse— e passar a faixa como o decoro do cargo que ocupava me impunha.

Assim não o fiz e, infelizmente, para mim não há mais tempo. Nem sequer um novo amanhã. Se ainda estivesse por aí, tenha certeza, faria tudo diferente. Reflita sobre isso, pois ao senhor ainda resta tempo. Aproveite-o. Saber perder é muito mais altivo do que saber ganhar.

Daquele que não lhe quer mal,

João Figueiredo

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