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Swany Zenobini

Refugiados afegãos: retórica e realidade

O resgate do Estado passa pelo coração civil dos seus cidadãos

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Swany Zenobini

Relações públicas, líder do comitê de enfrentamento ao tráfico humano do Grupo Mulheres do Brasil e coordenadora do Coletivo Frente Afegã

Hoje é o 121º dia da minha atuação in loco no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, transformado em campo de refugiados de afegãos. Sou uma cidadã voluntária e coordenadora de um coletivo de cidadãos, com representantes da sociedade civil, que decidiu fazer algo diante da ausência do setor público. Criamos uma rede de proteção para esses refugiados, todos com vistos humanitários concedidos por embaixadas brasileiras, que não chegam em território brasileiro, por via aérea, sem avisar.

Aeroportos não podem ser campo de refugiados. A iluminação funciona 24 horas, o sistema de som é acionado a cada 30 minutos e as possibilidades de contaminação, pelo fluxo de pessoas, são significativas. Cerca de 300 refugiados estiveram ali, em frente à agência do Banco do Brasil, onde o número foi reduzido para menos da metade depois de casos de Covid identificados pelo coletivo de voluntários, através de testes obtidos. Infelizmente, nos últimos dias, o fluxo de refugiados voltou a subir.

Ali Ahmad, afegão de 103 anos, no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos - Danilo Verpa - 21.set.22/Folhapress

A falência do poder público, seja ele federal, estadual ou municipal, é revelada, por exemplo, pela sua ausência no local. Os voluntários estão lá 24 horas por dia, inclusive nos fins de semana. Como não há abrigos suficientes, a solução seria morar nas ruas, como vemos cotidianamente nos centros urbanos? A presença de voluntários em momento algum atua na "contramão de todos os esforços de acolhimento dos refugiados", mas se constitui na condição mais efetiva, até aqui, de reconhecer necessidades pela interação direta com eles.

Sem plano de acolhimento, esses refugiados ficam expostos a situações de extrema vulnerabilidade. Muitos estão com suas famílias ameaçadas, no Afeganistão, por terem vindo para cá. São crianças que aqui chegaram com meses de vida, algumas desnutridas. São idosos, por vezes doentes com Alzheimer, e famílias fugindo do Talibã, em especial mulheres e pessoas perseguidas em função de sua orientação sexual. O que tem acontecido ali, nos últimos quatro meses, mostra representantes organizados da sociedade civil mais comprometidos do que o poder público, este último insistindo no argumento da falta de orçamento, conforme declarado em várias audiências da Comissão Mista Permanente Sobre Migrações Internacionais e Refugiados do Congresso Nacional.

O saudoso geógrafo Milton Santos escreveu, no livro "A Natureza do Espaço", algo que merece nossa especial atenção em tempos de profundas transições, como é o caso das crescentes correntes migratórias em função de perseguições de ordem política, religiosa ou étnica, assim como vítimas de problemas climáticos e ambientais. O tema exige mais atenção do Estado e deverá estar na pauta do futuro governo.

Quando vi a crise migratória diante de mim, a partir da mensagem enviada por uma amiga nas redes sociais, fui entender, através do trabalho organizado com voluntários, o que estava acontecendo ali e como minimizar aquela situação de fragilidade social. Meu primeiro impacto foi com mulheres grávidas dormindo no chão frio, sem ao menos terem um colchonete. Ou, ainda, estar diante da força de idosos com mais de 80 anos tendo que recomeçar suas vidas sem o básico de atendimento médico e humanitário. São madrugadas mal dormidas, ao lado deles, entre bancos com divisórias. Foram várias as vezes que pedimos dinheiro para auxiliar mulheres que nem sequer tinham absorventes. Uma rede se formou diante da realidade dos fatos. Nós estávamos ali, enquanto o poder público se mostrava ausente.

Vi a sociedade civil despertar e, como um leão bravo, proteger seus semelhantes, seres humanos refugiados. Algo estava vivo, com o olhar apurado, diante da apatia do Estado. Encontramos atenção da imprensa como fonte de indignação. A sinistra situação vivida no maior aeroporto da América do Sul se tornou parte da vida de muitos voluntários que lá estão. Há um coração civil convicto, como canta Milton Nascimento, de virtudes cívicas sustentadas na força da indignação e esperança como irmãs que devem andar juntas.

Todo poder desligado da sensibilidade humana corre o risco de descambar para a barbárie e a morte. O resgate do Estado passa pelo coração civil dos seus cidadãos. É através do engajamento e da luta por valores humanistas que o ser humano construirá esse novo espaço de convivência, fundado no olhar ativo capaz de unir ideal e realidade. O acampamento de refugiados no aeroporto de Guarulhos não é obra o acaso e não se resolverá com retórica, mas ação humanitária.

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