Descrição de chapéu
José Carlos Souto

A camisa da seleção é irrecuperável

Não proponho a proibição, mas a CBF faria bem se aposentasse a canarinho

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José Carlos Souto

Médico urologista

Nos últimos quatro anos fomos nos acostumando a ver a camisa da seleção brasileira associada a atos antidemocráticos. Multidões de verde e amarelo pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e clamavam por intervenção militar. Após a eleição, a camisa canarinho começou a ser vista associada ao crime: obstruções de estradas, agressões e acampamentos golpistas. Grupos de pessoas passaram a defender delitos tipificados no Código Penal, sempre ostentando a camisa da seleção.

E então veio a intentona bolsonarista de 8 de janeiro. O Brasil todo assistiu, atônito, a uma horda de vândalos invadindo os três Poderes com o objetivo manifesto de desencadear um golpe de Estado. Boa parte dessas pessoas, que destruíam obras de arte de valor inestimável agindo como talibãs, estava fardada com o uniforme da seleção brasileira. Quem assistiu ao 8 de janeiro não tem como "desver" essas cenas. A camisa está, inquestionavelmente, associada ao terrorismo golpista. Símbolos importam.

Muitos dos golpistas que invadiram a sede dos Três Poderes estavam usando o uniforme da seleção - Sergio Lima - 8.jan.23/AFP - AFP

O nazismo foi derrotado na Alemanha há mais de 60 anos. E seus símbolos continuam proibidos. Você poderia perguntar por que um alemão que nasceu no século 21 não tem o direito de circular por aí ostentando uma suástica —que, afinal, já foi um símbolo nacional. Acontece que não existe nazismo moderado —é uma ideologia totalitária, extremista e genocida. Há que se sacrificar a liberdade individual pois o dano social coletivo provocado por essa ideologia tem precedência. Como explicou Karl Popper, uma sociedade livre não pode tolerar os intolerantes sob pena de sucumbir a eles. Da mesma forma, não existe bolsonarismo moderado. Parafraseando o ex-secretário da Cultura de Bolsonaro, que plagiou Goebbels: "O bolsonarismo será sempre autoritário, violento, misógino, homofóbico, negacionista —ou então não será nada".

Veja, não estou propondo a proibição da camisa da seleção. Mas penso que a CBF precisa aposentá-la. Durante a Copa, ainda houve a tentativa de reaver esse símbolo roubado dos brasileiros pelo neofascismo.

Golpista com a camisa da seleção após ser detido em Brasília - Ueslei Marcelino - 8.jan.23/Reuters

Mas isso foi antes do 8 de janeiro. Depois da intentona protagonizada por pessoas devidamente uniformizadas, esse momento passou. A camisa verde e amarela é irrecuperável. Os símbolos importam.

Hoje, quando vemos um grupo de jovens de cabeça raspada e com suásticas tatuadas, de pronto chamamos a polícia. Mas e se houver um grupo de pessoas com a camisa canarinho perto de um cinegrafista? Ou de um prédio público? Ou de um Di Cavalcanti? Como saberemos se são criminosos ou torcedores? Se todos passarem a usar suásticas, como poderemos identificar os verdadeiros nazistas?

Philippe Coutinho festeja seu gol durante a partida de estreia do Brasil na Copa América de 2019; na ocasião, a seleção voltou a usar o histórico uniforme com a camisa branca - Rahel Patrasso - 14.jun.19/Xinhua

Por muito menos, uma camiseta da seleção já foi substituída. A camisa canarinho nasceu após a derrota no Maracanã na Copa de 1950. Até então, era branca. Por evocar más lembranças, foi trocada pela verde e amarela. Décadas depois, esse uniforme ficou associado, de forma indelével, a todo tipo de barbárie. As pessoas que defecaram e urinaram nas sedes dos 3 Poderes o fizeram, metaforicamente, também sobre esse símbolo brasileiro. E símbolos importam.

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