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João Whitaker e Guilherme Wisnik

Quando nós mesmos produzimos as tragédias

No Brasil, urbaniza-se quase sempre só para os ricos; aos pobres, o improviso

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João Whitaker

Arquiteto-urbanista e economista, é diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP)

Guilherme Wisnik

Arquiteto-urbanista, é vice-diretor da FAU-USP

A tragédia no litoral paulista teve como causa imediata a excepcional chuva, a maior da história. Há ações possíveis, como a iniciativa proposta pela USP de juntar esforços técnicos para uma melhor previsibilidade desses eventos climáticos, que a cada ano se repetem com mais força, e assim permitir a essencial ação de prevenção, retirando as pessoas em risco antes de os desastres ocorrerem.

Mas não podemos tapar o sol com a peneira e achar que apenas as chuvas excepcionais são causa de tamanho drama. O que ocorreu, ocorre e ainda ocorrerá se deve à ação antrópica, à maneira como no Brasil se promove uma urbanização socialmente desigual e ambientalmente agressiva.

Imagens aéreas mostram destruição na Barra do Sahy, região mais atingida pelas chuvas em São Sebastião (SP)
Imagens aéreas mostram destruição na Barra do Sahy, região mais atingida pelas chuvas em São Sebastião (SP) - José Ricardo Souza/Sky Imagens

A ocupação do litoral norte de São Paulo é um exemplo desse processo. Escolhido como lugar paradisíaco de descanso dos paulistanos de mais alta renda, foi tendo, ao longo de décadas, suas terras parceladas por empreendedores, que em geral as compravam de caiçaras ou simplesmente ocupavam áreas públicas da serra do Mar para a construção de casas de veraneio nos melhores lugares da orla.

Apesar do conforto, a falta de regulação que caracteriza nossa urbanização fez com que essa ocupação intensa não fosse acompanhada de políticas públicas de infraestrutura que permitissem atender a seu aumento acelerado e inexorável. O saneamento foi resolvido por fossas sépticas que rapidamente esgotaram a capacidade do solo; os morros foram recortados para a construção de estradas que permitissem um acesso rápido à região; o solo foi se impermeabilizando e, não raramente, mansões foram construídas em áreas inadequadas da encosta.

Toda essa ocupação geraria uma intensa atividade econômica, com crescente oferta de emprego na construção civil, na manutenção das casas, das marinas, nos serviços de segurança —e assim por diante.

Porém, como é de praxe no nosso país, nenhuma política pública se preocupou com o fato de que isso atrairia muita gente —que, como é determinado em nossa Constituição, deveria ter o direito assegurado a moradias dignas. No Brasil, urbaniza-se quase sempre só para os ricos, e os mais pobres ficam desassistidos.

Assim, repetindo a lógica de todas as cidades, restou a essa população trabalhadora (sem a qual o paraíso de veraneio dos mais ricos não existiria) instalar-se nas encostas, nas chamadas ocupações informais.

Os cortes das estradas fragilizam os morros, a impermeabilização do solo aumenta a inundação, as construções em encostas —tanto as mais luxuosas quanto as mais populares— elevam o risco de deslizamentos e a superocupação satura o solo. São décadas de uma urbanização desenfreada, sem limites, sem critérios, promotora de segregação social e destruição ambiental. Quando a chuva vem forte, ela não perdoa. Mas as vítimas, em sua enorme maioria, são sempre as famílias moradoras das comunidades mais pobres.

Podemos, sim, culpar as chuvas. Mas, se olharmos só para elas, só nos restará aguardar a próxima tragédia. Felizmente, a consciência sobre isso vem mudando no Brasil, e a ida imediata do presidente da República à região é um exemplo. É por isso que a formação de jovens arquitetos-urbanistas, conscientes de seu papel social, torna-se a cada dia mais importante.

É evidente que o modelo de urbanização dominante no mundo está, hoje, em franca revisão. Não poderemos continuar submetendo a natureza aos desígnios do progresso técnico como se ela fosse passiva e amorfa. A renaturalização das cidades com justiça ambiental é um desafio urgente, ainda mais em regiões tropicais. Cabe à universidade, ao poder público e às diversas organizações da sociedade enfrentá-la.

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