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Luiz Guilherme Piva

Liberdade e acordos

Ditaduras sempre se valem do controle e do desrespeito dos corpos

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Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de “Ladrilhadores e Semeadores” (Editora 34) e “A Miséria da Economia e da Política” (Manole)

Em entrevista à Folha em maio de 1995, feita por Contardo Calligaris, Umberto Eco defende que o corpo pode servir de fundamento para valores universais.

Nas suas palavras: "Se não tenho a língua, não posso falar. Então, não devem me cortar a língua. (...). Do mesmo jeito, não devem me cortar a mão etc. Uma vez que me deixaram tudo isso, devem me deixar usá-lo, na medida em que se chegue a um acordo". (...). "Um acordo procurando garantir (...) a todos o máximo uso possível da língua." "(...) nenhuma ditadura pode paralisar nossa possibilidade de pensar, mas eles podem impedir nossa possibilidade de expressar este pensamento com a língua. O controle físico afeta os valores espirituais." (...). "Não pretendo que todos os valores possam ser deduzidos do corpo. Há muitos outros que não podem, mas, para chegar a um acordo entre eu e um esquimó ou um argelino, provavelmente, se começarmos por nosso direito de usar o corpo, encontraremos alguns valores universais. ‘Não cometer estupro’, porque seria usar o corpo do outro sem sua permissão."

É uma concepção cuja centralidade está em dois pontos. O primeiro: ditaduras sempre se valem do controle e do desrespeito dos corpos; e o segundo: democracia pressupõe, como base, acordos livres entre as pessoas quanto aos usos de seus corpos. Em resumo: liberdade se exerce com acordos quanto a consentimentos e respeitos mútuos.

O conceito de liberdade que vem sendo usado no mundo por correntes da direita é distinto. Para elas, liberdade é a possibilidade de se fazer o que se quer, independentemente do que isso acarreta para outra pessoa, para a sociedade e para a própria percepção da realidade, uma vez que abriga também a permissão para se inventarem fatos, declarações, pensamentos e atitudes e atribuí-las a quem quer que seja —desde que sob o capuz do que entendem por "livre-arbítrio".

Elimina-se assim a necessidade de acordos e consentimentos. Por isso entendem-se como possíveis invadir espaços públicos e agredir quem perfilha ideias, orientações e preferências que, na visão do agressor, são contrárias "à sua liberdade" de agir e pensar.

Essa parte (minoritária, mas expressiva) da sociedade que pensa ser a liberdade o oposto de acordos, respeitos e consentimentos, advoga para si todos os "direitos". Aos demais, cabe sujeitar-se ou desaparecer. Não requer grande sofisticação igualar tal acepção de liberdade a ditadura. Não é por acaso que a valoração das armas e a glorificação das Forças Armadas não como ator institucional, mas como poder arbitrário —precisamente porque podem fazer uso legal da violência contra os "inimigos" daquela "liberdade"—, integram a cosmologia desse pensamento encapuzado.

Como a outra parte (majoritária) da sociedade pensa que liberdade e acordos são termos que não se explicam isoladamente, não é esperável que haja acordo (que ironia!) entre as duas partes. Porque parece impossível, no curto prazo, convencer a parte que confronta liberdade e acordos de que, ainda nas palavras de Umberto Eco, "não devem me impedir de cagar, mas se eu venho cagar em sua casa, não está certo. Então, fazemos um acordo, eu não cago em sua casa, você não caga em minha casa e nenhum de nós caga no meio da rua".

Muito menos numa sala do Supremo Tribunal Federal.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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