Descrição de chapéu
Fernando Goldsztein

'Mudança fantasma' é gota no oceano do descaso

Notícias sobre desperdício do dinheiro público já não causam indignação

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Fernando Goldsztein

Empresário e fundador do The Medulloblastoma Initiative

"Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão. Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede. Ninguém podia fazer pipi, porque penico não tinha ali. Mas era feita com muito esmero, na rua dos Bobos, número zero."

Quem não conhece a famosa canção "A Casa", composta por Vinicius de Moraes e eternizada em parceria com Toquinho? Impossível não lembrar da música quando o tema é o desperdício do dinheiro público no Brasil. Antecipo em esclarecer, especialmente para os leitores mais fervorosos, que este artigo não tem nenhum viés ideológico. Não farei aqui apologia à esquerda ou à direita.

0
Plenário da Câmara dos Deputados - Gabriela Biló-7.jul.22/Folhapress - Folhapress

No Brasil, infelizmente, as notícias sobre desperdício do dinheiro público parecem já não causar indignação. Viraram paisagem. Um dos maiores exemplos é o custo do Congresso Nacional. Cada um dos 513 deputados tem direito a 20 assessores. Já os 81 senadores, por sua vez, podem contratar 60 assessores cada. São 25 mil pessoas trabalhando no Congresso a um custo total de R$ 11 bilhões por ano (ou R$ 30 milhões por dia). O segundo Parlamento mais caro do planeta, de acordo com a rede BBC.

Até aqui, nada de novo. Já escrevi sobre isso antes e tenho poucas esperanças de ver essa situação se modificar no curto ou médio prazo. Entretanto não perdi a minha capacidade de indignação. E a expresso neste texto ao ler nesta Folha a reportagem "Congresso banca até R$ 79 mil para ‘mudança fantasma’ de deputados e senadores" (22/2).

Trata-se de uma verba de R$ 40 mil para os congressistas mudarem-se para Brasília ou de volta para seus estados no início e no final da legislatura. A cada eleição temos 513 deputados encerrando e iniciando seus mandatos. Portanto, são R$ 40 milhões a cada quatro anos.

O número em si não impacta tanto frente aos bilhões de reais citados anteriormente, não é mesmo? O que impacta, sim, é saber que a quase totalidade dos deputados não mora em Brasília. Ficam por lá de terça à quinta-feira e tem estadia (hotel, flat ou aluguel) e passagens aéreas pagas por outras verbas parlamentares. Portanto, para estes não existe mudança nenhuma. E mais: cerca de 300 deputados foram reeleitos, ou seja, nada mudou em suas rotinas com o novo mandato.

Mas, mesmo assim, todos têm direito aos R$ 80 mil de auxílio para mudanças (R$ 40 mil por finalizar e R$ 40 mil por iniciar seus mandatos). Quer mais? Os deputados eleitos pelo Distrito Federal também recebem o tal auxílio mudança...

Este exemplo da "mudança fantasma" é apenas uma gota no oceano do descaso com o patrimônio do povo brasileiro. Mas serve para nos chacoalhar. Serve para não nos anestesiarmos diante de tanto desrespeito com o dinheiro público. Enquanto nossos deputados recebem ajuda de custo para "mudança fantasma", entre outros tantos privilégios, dezenas de milhões de brasileiros vivem em sub-habitações, em zonas de risco e sem esgoto e água encanada. Vivem em casas nem um pouco engraçadas, que não têm teto, que não têm nada.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.