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Eduardo Reina e Irene Gomes

As terras tomadas dos camponeses do Araguaia

Ações perpetradas por militares na guerrilha envolvem ainda morte e tortura

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Eduardo Reina

Jornalista e mestre em comunicação social, é autor, entre outros, de “Cativeiro Sem Fim” (Alameda Editorial) e “Depois da Rua Tutoia” (11 Editora)

Irene Gomes

Advogada e pesquisadora, é especialista em direito público

Na primeira metade da década de 1970, as operações militares para exterminar a guerrilha na região do Araguaia tiveram como consequência mais que o desaparecimento de cerca de 70 integrantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Houve a expulsão de centenas de famílias de agricultores locais de suas posses. As terras foram tomadas pelas Forças Armadas e entregues a empresas, garimpeiros e pessoas afeitas aos militares que atuaram na região.

O processo de desterritorialização dos camponeses é uma etapa ignorada dentro do eixo reparatório da justiça de transição brasileira.

Militar participa de busca a ossadas de guerrilheiros mortos durante o período da ditadura, em 2009, em São Geraldo do Araguaia (PA) Joel Silva - 23.jul.09/Folhapress - Folhapress

Amplo trabalho de pesquisa na região ouviu cem famílias campesinas localizadas às margens dos rios Araguaia, Tocantins e Xingu, onde habitavam há décadas. Estruturadas em núcleos familiares, viviam da agricultura, da caça, da pesca e do extrativismo.

A área tomada pelas Forças Armadas somente dos camponeses entrevistados soma 90 km2. É maior em seis vezes o município de São Caetano do Sul (SP), com 15 km2, ou mais de duas vezes o território de Olinda (PE), com 43 km2.

Para além do patrimônio material imediatamente tomado, significa que cem famílias perderam suas residências e seus meios de trabalho e sustento. Essas mesmas famílias camponesas tiveram seus maridos e/ou filhos e outros parentes presos, torturados, mortos e desaparecidos. Alguns dos seus foram sequestrados e enviados para trabalhos dentro de quartéis do Exército.

A história, o governo, os militares e a sociedade ocultaram muitas das atrocidades cometidas durante a Guerrilha do Araguaia (1972-1975). Como essas, que ficaram silenciadas por décadas.

Euclides Martins de Moraes e família moravam na beira do igarapé Córrego dos Veados, onde plantavam arroz, mandioca, milho. Um dos filhos de Euclides, com seu mesmo nome, relata que o pai, já falecido, foi preso no dia 1º de novembro de 1973.

"Chegou umas pessoa lá (sic), procurando assim: Ô seu ‘Zédiu’, ‘cê’ pode me acompanhar ali na Bacaba? E ele acompanhou a tropa do Exército e foram pra Bacaba. Na prisão lá tinha tortura. O camarada subia em cima de uma lata assim, passava a rasteira só pra ver o cara deitar no chão. E tinha um aparelhozinho com pilha, aí eles ‘dizia’ assim: pega aqui ‘procê’ vê como é bom. Aí quando a pessoa pegava e tocava... O cabra caía embolado todinho no chão. Aquilo era só tortura que eles faziam."

Foram expulsos de suas terras. Euclides pai recebeu tanta tortura, recordam os filhos, que não conseguiu mais trabalhar. "A lembrança que ‘nóis’ tinha é porque ele era saudável. Depois de preso, ele ficou sem poder trabalhar e foi indo até a morte. Morreu dia 20 de setembro de 2002", relata o filho Ladiel, 67.

Outro camponês que teve as terras expropriadas pelo Exército é Vicente Pedro da Silva, 74, preso em 1972. Diz que ficavam muitos dias sem comer, nus dentro de um buraco no chão. "[Na base de Bacaba] Era tudo molhado de urina dentro do ‘coisa’. Não tinha banheiro. Era homem demais dentro do ‘coisa’, era tudo nu. Era demais, era gente demais, homem demais. E sem comer!", recorda.

"Seu Pedro", camponês que colaborou com a guerrilha do Araguaia: ele fala de torturas e do terror que o Exército provocou na população; a imagem está no documentário "Verdade 12.528", de Paula Sacchetta e Peu Robles - Divulgação

Mesma violência descrita por Adão Rodrigues Lima, já falecido, que perdeu tudo e não conseguiu mais trabalhar devido às torturas sofridas. "Perdi tudo, fiquei sem nada e até hoje vivo doente sem poder trabalhar. Nunca mais arrumei o que tinha na época, que era saúde e terra para trabalhar. Então eu peço que tenham compaixão dos torturados da Guerrilha do Araguaia porque somos necessitados, pobres e doentes de tanto apanhar.", declarou há sete anos.

Ainda não se deu a devida atenção ao ocorrido na região envolvendo a disputa das terras e as ações dos militares direcionadas aos camponeses. Ao analisar os depoimentos desses agricultores, descobre-se que as ações das forças militares promoveram o massacre dos insurgentes e a destruição das cidades da região, além de perpetrarem atos de extrema crueldade, sem poupar mulheres e crianças.

Não restaram aos camponeses voz, ouvidos, memória, territórios nem a manutenção da atividade campesina na condição de posseiros, "donos" de suas próprias terras. Sobraram invisibilidade e insignificância, sentidos que precisam ter novos significados.

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