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Diogo R. Coutinho e Beatriz Kira

PL das Fake News sem órgão regulador é lei desdentada

Ausência de autoridade pública independente cria incertezas e enfraquece propósito

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Diogo R. Coutinho

Professor da Faculdade de Direito da USP

Beatriz Kira

Doutora em direito econômico pela USP, é pesquisadora de pós-doutorado na UCL (University College London)

O projeto de lei 2.630/2020 —conhecido como PL das Fake News— está agendado para ir à votação na Câmara dos Deputados nesta terça-feira (2). No entanto, se votada como está, a proposta corre o risco grave de não entregar o que promete.

Para alcançar os objetivos de melhorar a transparência e a prestação de contas nas plataformas digitais, é crucial a criação de uma entidade reguladora responsável por fazer cumprir suas disposições. Infelizmente, como noticiado, a versão mais recente do PL removeu essa disposição fundamental, o que compromete a eficácia da proposta.

A oposição bolsonarista e evangélica (neste ponto alinhada às big techs) afirma que a previsão de um regulador criaria o "Ministério da Verdade" —uma alcunha depreciativa e irônica para algo imprescindível à efetividade das novas regras destinadas a disciplinar os provedores de internet no país. Alega-se que a entidade autônoma criada para garantir a aplicação da lei ("enforcement") poderia se prestar ao controle ideológico das plataformas digitais. Os oponentes da proposta afirmam que supervisionar a aplicação da futura lei das fake news seria um descalabro, pois daria margem à censura e violaria a liberdade de expressão.

Diante das criticas e pressões, o relator do projeto, deputado Orlando Silva (PC do B-SP) optou por retirar a figura da entidade autônoma da proposta apresentada para votação, deixando a futura lei "sem dentes", como se diz no jargão regulatório. A ausência de uma autoridade pública independente capaz de monitorar, com expertise técnica, transparência e controle social o cumprimento das regras e obrigações ali previstas é o que seria perigosa.

Aprovar uma lei tão importante sem a previsão institucional de uma entidade reguladora tende a criar incertezas que a enfraquecem, abrindo margem para seu descumprimento e questionamentos por parte daqueles que terão suas atividades disciplinadas. Também abre margem para que sua implementação seja, no futuro, atribuída a um órgão do Executivo, este sim mais politizado, com o risco de que a aplicação das normas ali previstas fique à mercê das preferências do governo de plantão. Interessa, aliás, às próprias empresas de tecnologia a existência de um ente regulador independente, pois haveria maior segurança jurídica em relação à implementação das regras, o que tornaria suas atividades menos vulneráveis à discricionariedade de um regulador não especializado.

É importante destacar que a necessidade de criação de uma entidade reguladora não exclui a possibilidade de outros arranjos regulatórios e estratégias de regulação a serem adotados. A regulação do tipo "comando e controle" não é a única opção e talvez não seja a mais adequada para lidar sozinha com a complexidade do objeto da regulação. De fato, a estrutura da lei permitiria diferentes camadas de regulação. Ademais, na versão do PL que previa a possibilidade de criação da entidade autônoma, a instância ali prevista não tinha o poder de remover ou moderar a postagem de conteúdos específicos. Ou seja, a imagem de um Ministério da Verdade é uma fake news em si. Não estamos defendendo uma versão autoritária e orwelliana de regulação das plataformas digitais, mas sim uma resposta institucional sofisticada, que leve em conta a complexidade do ecossistema digital.

Além das questões substantivas, do ponto de vista formal há, ainda, preocupações de que a entidade reguladora precise ser instituída por projeto de lei encaminhado ao Congresso pelo Poder Executivo. Embora a criação e estruturação de órgãos da administração pública seja de iniciativa do chefe do Poder Executivo, isso não impede que o PL das Fake News preveja a necessidade de criação de uma entidade reguladora, bem como as competências que ela deveria assumir quando criada.

Há, inclusive, a possibilidade de atribuir certas responsabilidades a uma versão fortalecida do CGI.br, que, dependendo do desenho institucional escolhido, poderia construir capacidades para desempenhar o papel de regulador ou de um coordenador de um arcabouço regulatório. O pior cenário seria a aprovação de uma lei das fake news sem a previsão de um órgão responsável por sua aplicação no day after de sua vigência. É isso que devemos evitar.

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