Na enxurrada de novas regras eleitorais aprovadas às pressas pela Câmara dos Deputados em benefício dos partidos, uma rara proposta de interesse genuíno da sociedade é a imposição de transporte coletivo gratuito nos dias de votação. Ainda assim, o tema não mereceu debate à altura de sua relevância.
Segundo o texto proposto de última hora, "os entes federados, direta ou indiretamente, por suas concessionárias ou permissionárias, devem ofertar gratuitamente o serviço público de transporte coletivo de passageiros". Sabe-se lá como a norma será seguida e custeada em todos os rincões do país, mas essa não é a única questão.
Um dos argumentos principais em favor do passe livre é que, sendo o voto obrigatório no país, cabe ao Estado garantir que todos os cidadãos, em particular os mais pobres, possam cumprir esse dever.
A tese faz sentido, mas envolve as consequências de uma distorção. Como esta Folha advoga há anos, o voto deveria ser facultativo, como na esmagadora maioria das democracias —vale dizer, deveria ser um direito a ser exercido conforme a escolha de cada eleitor.
A discussão é tabu no mundo político brasileiro, possivelmente devido ao receio de que o fim da obrigatoriedade resulte em queda do comparecimento de eleitores e, assim, questionamento à legitimidade dos eleitos. Tais preocupações já parecem superadas pelos fatos.
A abstenção tem subido no país desde a redemocratização, num sinal de que os cidadãos vão percebendo que, na prática, o voto não é tão obrigatório assim —as sanções para os que não vão às urnas em geral são ínfimas, e os transtornos para as justificativas diminuíram com a informatização. Nada disso torna menos legítimos os eleitos.
Estudo publicado neste ano pelo Ipea, instituto de pesquisa vinculado à União, concluiu que o passe livre adotado em 379 municípios (respondendo por quase 50% do eleitorado) no segundo turno de 2022 não teve impacto relevante no comparecimento, embora tenha contribuído para a mobilidade urbana naquela data.
Dito de outra maneira, o benefício foi aproveitado basicamente pelos que já pretendiam votar.
Tudo considerado, o transporte gratuito ainda pode ser defensável como meio de facilitar o voto dos mais pobres. Trata-se, porém, de mais uma política pública proposta sem a necessária avaliação de custos, benefícios, meios de execução e alternativas.
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