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Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo

35 anos de Constituição: direitos indígenas para inglês ver?

E em 2023 o que se discute no Congresso é um marco temporal

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Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo

Advogada preventiva nas áreas de artes, cultura e propriedade Intelectual, é servidora pública no Itamaraty cedida ao Ministério da Cultura

Em julho de 1988, eu era uma criança de sete anos. Xuxa Meneghel estava em ascensão e lançava seu terceiro álbum, de imenso sucesso. Entre as músicas, estava "Brincar de Índio", de Michael Sullivan e Paulo Massadas. A canção foi gravada em espanhol no ano seguinte como "Juguemos a Los Indios" e circulou por América Latina, Europa e EUA.


Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a nossa Constituição, um marco na democracia brasileira. Além de simbolizar a reconstrução do país, após 20 anos de ditadura militar, a Constituição garantia, pela primeira vez, o respeito à diversidade cultural e a capacidade civil plena dos sujeitos indígenas, até então tutelados pelo Estado, em condição de incapacidade relativa. Ademais, garantia aos povos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, expressos de forma clara no Artigo 231.

Ailton Krenak em foto no Instagram - @_ailtonkrenak no Instagram

Um ano antes disso, Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor, havia proferido o comovente discurso, na tribuna da Assembleia Constituinte, em que se vestiu de terno branco e pintou o rosto com jenipapo para protestar pelos direitos indígenas e contra a supressão destes, que não foram acolhidos no texto constitucional.

O movimento indígena estava a todo vapor. Na década de 1970, diferentes povos, de diversas origens geográficas, haviam se unido, forjando uma identidade indígena marcada pela violência física e simbólica, quando não pelo genocídio, a fim de reivindicar garantias mínimas de existência. Esse movimento era documentado nos registros jornalísticos e percebido em todo o país.

No início da década de 1980, bem antes de Xuxa interpretar a canção, Baby Consuelo e Pepeu Gomes haviam gravado "Todo Dia Era Dia de Índio", criticando a dizimação dos indígenas no processo de colonização. Os cantores evocavam o cinismo da data de 19 de abril como um dia singular de conscientização e valorização dos povos indígenas e recordavam que, antes da chegada dos brancos, essa terra pertencia a mais de três milhões de indígenas. Nesse sentido, chamavam a atenção para a visibilidade, não para o apagamento desses povos.

Raoni Metuktire no STF antes da votação do marco temporal - Evaristo Sá - 30.ago.23/AFP

Criança, lembro de ver Raoni, indígena da etnia caiapó, na televisão, com o seu lábio esticado, e me cativar com um líder que parecia ter saído dos meus livros de folclore. Era assim que eu e a maioria dos brasileiros aprendíamos na escola o lugar dos povos indígenas, sujeitos estereotipados, a quem se reservava uma história romântica presa ao passado. Apenas em 2008, com a promulgação da lei 11.645, é que o ensino da história e da cultura indígena passou a ser obrigatório no ensino fundamental e no médio.

Trinta e cinco anos após a formalização da reorganização constitucional do Estado democrático de Direito, muita gente ainda identifica os mais de 305 povos originários aqui presentes, 1,7 milhão de pessoas, com o estereótipo do personagem da letra de Sullivan e Massadas.

Entre avanços e retrocessos, o aniversário da Constituição testemunha a mesma dança da Xuxa.
O que se discute no Congresso, em 2023, é um marco temporal para as demarcações de terras indígenas.

Em outras palavras, grosso modo, nossos parlamentares querem decidir que a redação constitucional atinente aos povos indígenas brasileiros é apenas para inglês ver, reproduzindo a história hegemônica excludente e autoritária do Brasil.

Não é brincadeira.

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