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Danielle Hanna Rached e Denise Vitale

Marco Temporal: vetar para salvar a Constituição

Esforço do constitucionalismo moderno sempre foi evitar a tirania da maioria

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Danielle Hanna Rached

Doutora pela Universidade de Edimburgo e professora do Instituto de Relações Internacionais da USP

Denise Vitale

Professora da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora do CNPq

Em uma mesma semana, tivemos duas decisões relacionadas ao direito originário dos povos indígenas "sobre as terras que tradicionalmente ocupam".

A primeira, do STF, rejeitou a tese do marco temporal, reconhecendo os direitos dos povos originários como previsto pelo legislador constituinte. Tal tese, indevidamente criada pelo próprio STF, condiciona as demarcações à presença física das comunidades indígenas nos territórios em 5/10/88, exigindo ainda prova cartorial de onde estavam nessa data. Trata-se de uma tese inconstitucional, que retira direitos assegurados pela democracia brasileira e cede ao abuso do poder econômico e do poder político não assentado na vontade popular.

Como resposta à decisão do STF, o Senado aprovou projeto de lei (PL) validando a tese do marco temporal e indo além. O PL dispõe que comunidades indígenas não precisam ser consultadas previamente em casos de intervenções de cunho estratégico em suas terras (art. 20) e diz que as terras indígenas podem deixar de sê-las "em razão da alteração dos traços culturais da comunidade indígena (...)" (art. 16).

O senador Rodrigo Pacheco tentou justificar o injustificável. Foi aplaudido ao dizer que o Congresso é a expressão máxima do sistema representativo democrático, "a vontade da maioria". Só faltou dizer que a minoria deve aguentar o retrocesso calada. E ao dizer aquilo ele errou.

Duas considerações sobre o tema: a representatividade do Congresso é questionável e democracia não é simplesmente a vontade da maioria.

É evidente que a democracia é o melhor sistema de governo, já que do outro lado estão os autoritarismos. Mas vícios como a falta de transparência, a distância do eleitorado, a falta de controle pela sociedade e o abuso do poder econômico podem distorcer a representatividade no Congresso. Só para ficarmos num exemplo recente, a mobilização de bilhões de reais via orçamento secreto garante base governista enquanto captura eleitores.

E a distância entre a vontade do povo e a vontade do Congresso nunca foi tão evidente. Em pesquisa do Datafolha, o Congresso é aprovado por apenas 16% da população. Para 81%, o Congresso se equilibra entre regular e péssimo. Já 82% da população brasileira apoia a demarcação de terras indígenas ("Violência e Democracia: panorama brasileiro pré-eleições de 2022").

Em 2022, Lula foi eleito para restaurar o sistema de proteção ambiental, entre diversas outras pautas. E esse objetivo também está refletido no trabalho do Congresso, apesar das poderosas bancadas da bala, do boi e da bíblia, invariavelmente contrárias à matéria.

Em setembro vivenciamos temperaturas de mais de 40°C em pleno inverno, vimos ciclones, enchentes e mortes no Sul do Brasil e mais de cem botos-cor-de-rosa mortos no lago Tefé, no Amazonas, em virtude da temperatura elevada. Partindo da premissa, já comprovada, de que comunidades indígenas protegem mais o meio ambiente, como justificar um projeto de lei que privilegia poucos ruralistas em detrimento de toda uma população? Não há de ser por meio da "regra da maioria" dentro de uma casa que não representa nem canaliza a voz indígena.

De todo modo, o esforço do constitucionalismo moderno sempre foi evitar a tirania da maioria. James Madison, arquiteto da Constituição norte-americana, alertou para o perigo de cairmos nas mãos de facções: "homens de temperamento faccioso, com preconceitos locais, ou com desígnios sinistros, podem, por meio da intriga, da corrupção (...) começar por obter os sufrágios e em seguida trair os interesses do povo" ("Federalistas 10"). Daí a construção de mecanismos constitucionais que protegem minorias e evitam o abuso do poder, como a garantia dos direitos fundamentais e o princípio da separação dos Poderes.

No momento em que a nossa existência e a das gerações futuras estão ameaçadas pela emergência climática, é preocupante continuarmos a delegar decisões sobre vida e morte a políticos que representam não o corpo político, mas o poder econômico. Nossa presença na política é essencial. Essa conta vai chegar ao Congresso Nacional, mais cedo ou mais tarde.

Ao presidente Lula, é hora de vetar projetos de lei insidiosos, que traem os interesses da sociedade brasileira.

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