Descrição de chapéu
Cristina Caldas

A ciência de ponta vai além das pessoas brancas

Sim, cientistas negros e indígenas de excelência existem, e são muitos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cristina Caldas

Bióloga e doutora em imunologia pela USP, é diretora de Ciência do Instituto Serrapilheira

Quando a candidata começou a falar, escrevi a palavra "carvão" no topo da página. É essa a minha estratégia para me concentrar na pessoa durante uma entrevista: anoto o tema central do projeto e presto atenção no modo como o pretendente fala, sua expressão, seus gestos. Só na semana passada, ouvi 28 cientistas que buscam financiamento para suas pesquisas. Era a fase final de uma concorrida chamada de apoio à ciência, promovida pelo Instituto Serrapilheira em conjunto com a Faperj.

A pessoa que chega a essa etapa da seleção já provou, no papel, o potencial de seu projeto. Ao explicar o objetivo da pesquisa, a doutora Thamyres Sabrina Gonçalves avançava mais um passo de um caminho trilhado, até ali, com brilho. Em sua pesquisa, vai investigar se microcarvões das turfeiras da Serra do Espinhaço –entre Minas Gerais e Bahia– podem ser usados para reconstituir a dinâmica da paisagem até milhares de anos atrás.

Turfeiras são solos extremamente orgânicos, antigos e estáveis. Além de um depósito confiável de datação, são consideradas um dos principais estocadores de carbono da Terra. Se produzido intencionalmente, o fogo assinala presença humana. Pela datação, o carvão objeto da pesquisa de Gonçalves pode indicar uma ocupação mais antiga do que a admitida hoje nas Américas.

Como diretora do Serrapilheira –um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil–, era a sétima vez que eu selecionava candidatos em busca de apoio financeiro. Excelência é o que buscamos, e o que os candidatos oferecem. O inédito dessa edição foi que ela era destinada exclusivamente a ecólogos negros e indígenas, um perfil distante da figura tradicional do cientista branco, masculino, vindo dos grandes centros.

Thamyres Sabrina Gonçalves, que pesquisa o microcarvão, é negra e indígena. Tem um doutorado e dois mestrados. Bastaram 30 minutos de conversa para descobrir que, para além do saber acadêmico, ela é detentora de um tipo de conhecimento advindo de uma orgulhosa origem e bagagem de vida, capaz de promover as esperadas rupturas da ciência.

A doutora Thamyres Sabrina Gonçalves, que faz pesquisa com uso da turfa para datações
A doutora Thamyres Sabrina Gonçalves, que faz pesquisa sobre o uso da turfa para datações - Thamyres Sabrina Alves/Arquivo pessoal

Durante a entrevista, meus colegas avaliadores e eu tivemos a mesma percepção: estávamos diante de um daqueles pesquisadores que tornam a ciência mais rica e provocativa. Exatamente o que buscamos. Com Gonçalves, descobrimos outros candidatos de perfil parecido.

Nosso objetivo, ao criar uma chamada de apoio exclusivamente voltada para ecólogos negros e indígenas, era estender a esse grupo de cientistas as condições necessárias para desenvolver seus projetos e aumentar as chances de serem formalmente integrados à academia como professores universitários e pesquisadores. Sem esquecer da contrapartida: são justamente esses que podem, acreditamos, produzir um grande impacto na evolução da ciência.

Esse é o nosso sonho, mas também o plano para enfrentar, com urgência, a exclusão histórica, escandalosa, de negros e indígenas na academia brasileira.

Ao longo do processo de concepção e lançamento da chamada, foram frequentes as ressalvas quanto aos cientistas a que ela se destinava. Um candidato negro ou indígena, com doutorado em ecologia, que pratique uma ciência de excelência? Para alguns, era o mesmo que procurar um marciano.

Ao todo, recebemos 129 propostas, entrevistamos 28 candidatos e selecionamos 12 excelentes cientistas negros e indígenas. Sim, essas pessoas existem – e são muitas.

O valor da diversidade na ciência é a nossa crença. A visão mais ampla da ecologia virá de quem a compreende em uma vivência íntima, dela inseparável. Para nós, uma boa prática em ciência não hierarquiza os pesquisadores. Ao contrário, aproxima, faz dialogar, abre-se curiosa a todas as formas de conhecimento.

Aprovados na Faperj
Alguns dos cientistas selecionados na chamada Faperj/Serrapilheira - Reprodução

Desde que comecei a trabalhar no Serrapilheira, descobrindo e apoiando cientistas, assumi que só a excelência importa. Os lugares não estão reservados.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.