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Alim Aliev

Cultura ucraniana é farol de esperança na escuridão

Em tempos difíceis, interesse internacional sobre a nossa arte é encorajador

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Alim Aliev

Jornalista, pesquisador e ativista de direitos humanos, é vice-diretor geral do Instituto Ucraniano e membro da diretoria da PEN Ukraine, ONG criada para proteger a liberdade de expressão e os direitos dos autores

A cidade de Mariupol orgulhava-se de seu teatro municipal, uma estrutura colossal de 800 lugares, no estilo clássico monumental soviético da década de 1960. Em 16 de março de 2022, pouco depois das 10h da manhã, o teatro encheu-se de pessoas sentadas e em pé. Não formavam uma plateia, mas um grupo em busca de proteção contra bombas russas.

Em um dos piores crimes de guerra durante a invasão da Ucrânia, o teatro tornou-se vala comum para algo em torno de 600 pessoas. As estimativas do total de mortos variam. Mas não há dúvidas de que uma bomba russa foi lançada contra o local a despeito do aviso "crianças", escrito em russo, com letras grandes, no asfalto em ambos os lados do teatro.

Visitante observa a obra "São Sérgio e São Baco", um dos cinco raros ícones bizantinos expostos no Museu do Louvre, em Paris; as obras antes estavam expostas no Museu Nacional de Arte Bohdan e Varvara Khanenko, de Kiev, e foram retiradas para protegê-las de eventuais danos causados pela guerra - Anne-Christine Poujoulat - 13.jun.23/AFP - AFP

Foi um crime contra pessoas e também contra o patrimônio da Ucrânia. Após a invasão das forças russas, escavadeiras terminaram a demolição, que não foi a única. Em novembro de 2023, a Unesco constatou danos russos a 327 pontos culturais na Ucrânia, entre eles 124 locais de culto, 28 museus, 19 monumentos, 13 bibliotecas e 1 arquivo.

O escritor inglês George Orwell disse que "a maneira mais eficaz de destruir as pessoas é negar e obliterar sua própria compreensão de sua história". Quem investe contra a cultura de uma nação sabe o que faz. Erradicar o passado por meio da destruição de objetos culturais é ataque calculado à alma de um povo.

O presidente russo, Vladimir Putin, defende explicitamente que a Ucrânia nunca foi um Estado separado, e certamente não é uma nação, e considera os ucranianos nada mais do que um subconjunto dos russos. Infelizmente para Putin, a maioria das pessoas na Ucrânia sabe ter uma história, uma cultura e um idioma. Diante dessa verdade inconveniente, Putin tenta, durante a invasão, apagar o passado do meu país.

Vimos, com o coração dilacerado, glórias nacionais reduzidas a escombros. Mas isso também nos estimulou a resistir e a afirmar com orgulho nossa identidade. Imagine se uma potência hostil invadisse o Brasil e tentasse tirar tudo o que faz de você um brasileiro: música, dança, livros, filmes e mesmo seu idioma. Como reagiria ao ver tentarem apagar gradualmente tudo que constitui sua essência?

Escritores, filósofos, cantores e atores ucranianos encontraram sua voz nestes tempos difíceis. E é encorajador o aumento do interesse internacional. Museus e galerias de toda a Europa mostram um desejo genuíno de entender nossa cultura, quem somos e o que somos.

Na cidade alemã de Dresden inaugurou-se, neste ano, a exposição "Kaleidoscope of Histories, Ukrainian Art 1912-2023", que retrata a história turbulenta da Ucrânia por meio das obras de alguns de nossos artistas mais reverenciados. O Museu Bode, em Berlim, justapôs esculturas medievais à arte ucraniana contemporânea, e a capital da Estônia, Tallinn, realizou uma impressionante exposição de itens de vanguarda da Ucrânia do início do século 20. Este é um país que lutou para se libertar do controle de Moscou há mais de 30 anos, quando a União Soviética entrou em colapso.

Em tempos de conflito, a arte do protesto vem à tona. No Instituto Nanovic, nos Estados Unidos, uma exposição reuniu obras de tom nostálgico, sobre a vida antes da invasão, ao lado de outras que canalizam a raiva latente gerada pela carnificina e a destruição. Crucialmente, a arte se opõe à narrativa do Kremlin de que a Ucrânia nem sequer existe.

Em visita ao Brasil, espero saber mais sobre os ucranianos que emigraram para este país há 132 anos na esperança de uma vida melhor. Muitos enfrentaram dificuldades naquela época em áreas remotas propensas a doenças e fome. O poeta ucraniano Ivan Franko imortalizou o sofrimento dessas pessoas em seu poema "To Brazil" (1898).

Pode ser uma surpresa descobrir que os imigrantes ucranianos deixaram sua marca na cultura do Brasil. Certas igrejas, por exemplo, não pareceriam fora de lugar em Lviv ou Kiev. Duas cidades brasileiras —Mallet e Prudentópolis, ambas no Paraná— reconheceram o ucraniano como sua segunda língua nos últimos anos. Mallet ainda possui uma igreja de madeira com cúpula dedicada ao santo arcanjo Miguel, concluída por imigrantes ucranianos em 1903.

Que por meio da arte e da cultura possamos estender a mão da amizade ao Brasil com base em nossa herança compartilhada.

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