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Lucas Carlos Lima

Os desafios da decisão sobre o conflito em Gaza

Resolução de corte internacional chega em complexo contexto geopolítico

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Lucas Carlos Lima

Professor de direito internacional (UFMG), atuou perante a Corte Internacional de Justiça; organizador do livro “A Jurisprudência da Corte Internacional de Justiça” (ed. Del Rey)

Na última sexta-feira (26), a Corte Internacional de Justiça (CIJ) adotou uma ordem outorgando medidas cautelares na controvérsia entre a República da África do Sul e o Estado de Israel com base nas obrigações presentes na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948.

Em síntese, a Corte de Haia ordenou que Israel: 1 - tome todas as medidas em seu poder para prevenir atos que possam configurar genocídio; 2 - assegure que seus militares não incorram nos mesmos atos; 3 - adote medidas para prevenir e punir o incitamento à prática de genocídio; 4 - permita o fornecimento de serviços básicos e assistência humanitária aos palestinos em Gaza; 5 - preserve evidências sobre o cometimento de genocídio; e 6 - informe a corte sobre as medidas adotadas para cumprir a ordem.

Manifestantes agitam bandeira palestina em frente à Corte Internacional de Justiça enquanto o tribunal decide sobre acusações da África do Sul contra Israel - Piroschka van de Wouw/Reuters - REUTERS

Além disso, a CIJ foi enfática ao observar que todas as partes envolvidas no conflito estão vinculadas ao direito internacional humanitário. Conclamou a libertação imediata e incondicional dos reféns sequestrados durante o ataque a Israel.

Diante das seis obrigações estabelecidas na decisão, algumas ponderações parecem se fazer necessárias para interpretá-la.

Fruto de um trabalho colegiado, as decisões da corte passam por rigoroso debate sobre a escolha do léxico a ser utilizado em sua redação. Quando a maioria converge, pode-se supor que a linguagem logrou acomodar também divergências. Naturalmente, a busca pela "mínima linguagem comum" pode gerar descontentamentos. Some-se a esse fato que as partes no processo são dois Estados soberanos, iguais em liberdades e direitos. Esses dois argumentos podem explicar o porquê da corte internacional não ter ordenado um cessar-fogo —embora muitas obrigações decorram das ordens 1 e 2 supra.

Durante o procedimento cautelar, a tarefa da corte é determinar se os atos e omissões denunciados pela África do Sul parecem ser passíveis de enquadramento nas disposições da convenção. A CIJ foi clara ao afirmar que existe um direito do povo palestino em Gaza a não ser submetido a um genocídio, mas não afirmou que esse direito está sendo violado. Esse não era o objetivo do exercício do tribunal nesse momento processual que, diferentemente de uma decisão de mérito, visava apenas indicar medidas para garantir a continuidade do processo e sanar os riscos urgentes à controvérsia.

Coerente com sua jurisprudência, a decisão de 26 de janeiro não é uma decisão final e pode levar algum tempo até que se obtenha uma. Nos dois casos decididos pela corte envolvendo a convenção no passado, os processos levaram mais de dez anos para atingir um julgamento. A responsabilidade de um Estado por genocídio é difícil de ser provada. Entretanto, a decisão tem, dentre outros efeitos, o importante condão de alertar a comunidade internacional para os potenciais atos de violação da convenção.

Importante como é, a decisão cautelar encontrará dois desafios imediatos. O primeiro envolve seu cumprimento. Em casos também envolvendo a Convenção contra o Genocídio, como em Ucrânia versus Rússia, a decisão liminar do tribunal continua a ser desrespeitada. Será interessante verificar se os Estados que apoiaram a iniciativa da sul-africana exercerão alguma pressão em prol do cumprimento da decisão —ou se serão palavras ao vento.

O segundo é a própria condução do processo num contexto geopolítico complexo e seu significado para o conflito. O entendimento do tribunal foi estrategicamente construído de modo a exercer pressão para o fim do conflito. Sua linguagem ponderada em algumas passagens será, certamente, alvo de crítica. Caso sirva a diminuir o sofrimento da população civil em Gaza, bem como indicar uma direção que culmine com a liberação de reféns, seu teste será positivo. O problema será se servir tão somente para agudizar as tensões e for apropriada para defender argumentos teratológicos.

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