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Ana Maria Bierrenbach e Hayle Melim Gadelha

A arte da diplomacia

Iniciativa artística na Segunda Guerra faz refletir sobre relações políticas em tempos de cizânia

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Ana Maria Bierrenbach e Hayle Melim Gadelha

Diplomatas

Uma aliança entre pintores modernistas e diplomatas brasileiros, selada há exatos 80 anos, foi parte dos esforços do país no combate ao nazifascismo. Em reação a uma carta dos artistas Alcides da Rocha Miranda e Augusto Rodrigues, o chanceler Oswaldo Aranha liderou a improvável empreitada de mandar 168 quadros a Londres, ao mesmo tempo em que 25 mil pracinhas atravessavam o Atlântico rumo à Itália.

Carlos Scliar participou nos dois fronts —alistou-se na Força Expedicionária Brasileira e doou quatro obras para a Exposição de Pinturas Modernas Brasileiras. Naquele ano de 1944, em que os Jogos Olímpicos de Londres foram cancelados em razão dos ataques com mísseis V-2, gestões diplomáticas convenceram a tradicional Royal Academy a expor em suas paredes o então desconhecido modernismo brasileiro. Entre os 70 pintores que enviaram trabalhos para a mostra, estavam Tarsila, Portinari, Di Cavalcanti, Volpi, Segall, Burle Marx, Iberê Camargo, Cícero Dias, Heitor dos Prazeres, Pancetti, Rebolo e Djanira. Em 22 de novembro, foi inaugurada a mais representativa exposição de arte brasileira já realizada no Reino Unido, a qual seguiria para seis outras cidades.

O gravurista Carlos Scliar, que lutou contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial - 24.set.75/Folhapress

Os textos contidos no pequeno catálogo da exposição —era escasso o papel em meio à guerra— revelavam a dissonância entre a autopercepção do meio artístico brasileiro, que se considerava parte da vanguarda internacional, e a visão condescendente que os críticos britânicos tinham do país. Metade dos quadros foram vendidos em favor da Força Aérea Real, e 25 pinturas foram destinadas a importantes coleções. Assim, a Tate adquiriu sua primeira obra brasileira ("Elas se Divertem", de Cardoso Júnior), cujo retrato de mulheres tomando banho de sol aproximava-se dos estereótipos do Brasil.

Mais de 100 mil visitantes britânicos, entre os quais a rainha consorte Elizabeth, tiveram seu primeiro contato com a arte brasileira. A ampla cobertura da imprensa sobre a exposição contribuiu para mudar a imagem que se tinha do Brasil no Reino Unido. O público local admirou-se com a capacidade do país
—até então associado apenas à exportação de produtos primários— de aportar militar, econômica e culturalmente à comunidade das nações.

A motivação dos artistas que conceberam a iniciativa era pressionar o governo de Getúlio Vargas a posicionar-se ao lado da democracia. Os diplomatas que encamparam e concretizaram a exposição pretendiam mostrar ao mundo que o Brasil compartilhava os valores dos aliados na luta contra a barbárie e estava pronto para assumir responsabilidades na ordem que emergiria do conflito. Aranha listou, em documento preparado para o encontro secreto entre Vargas e Roosevelt em Natal (1943), as prioridades da política externa —a primeira delas era elevar o lugar do país no sistema internacional. A admiração e o conhecimento mútuos cresciam e geravam confiança entre as sociedades, criando ambiente favorável para as relações de longo prazo.

O filme "Arte da Diplomacia", que estreou no Festival do Rio em dezembro, conta esse episódio. O diretor Zeca Brito aprofundou pesquisa sobre a exposição de 1944, parcialmente remontada em 2018 pela Embaixada do Brasil em Londres, e trouxe o tema para discussões atuais sobre o antagonismo entre a arte moderna brasileira e o fascismo, ilustrado pela destruição, em 8 de janeiro, da tela "Mulata", de Di Cavalcanti, no Palácio do Planalto.

O rico material de arquivo mostrado no filme inclui mensagem profética em que Glauber Rocha adverte o pintor de que "tudo aquilo o que prezamos —o povo, a arte, a cultura— vem sendo desfigurado pelos homens do passado". Também surpreende a gravação de uma funcionária narrando o bombardeio do consulado do Brasil um mês antes da chegada das obras modernistas ao Reino Unido.

O espectador viaja por cidades brasileiras e britânicas enquanto conhece o paradeiro dos quadros e a história de seus autores. Com leveza e humor, o diretor convida a conversas com as famílias das personagens, curadores, colecionadores, diplomatas e historiadores da importância de Aracy Amaral e Dawn Ades.

Verdadeiro documento histórico com notável trabalho de câmera, o filme, que será projetado no Auditório Paulo Emilio, da Escola de Comunicações e Artes da USP, às 14h30 do dia 25 de março, faz refletir sobre as relações entre arte e política em tempos de guerras.

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