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Renato Ochman

O aprimoramento da ignorância

Precisamos combater a figura de alguém com a cabeça enterrada numa tela

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Renato Ochman

Advogado, é membro do Conselho da New York University

Nunca o conhecimento esteve tão acessível. O estranho e indesejável é que isso está fazendo a ignorância crescer.

Por outro lado, 2023 marcou pela violência, deixando pessoas incrédulas e sentindo-se ameaçadas. Por coincidência, assunto de tamanha importância tende a ser analisado de forma superficial. Se foram poucos os acertos humanos, a evolução tecnológica seguiu firme. O burburinho fez a The Economist escolher ChatGPT como palavra do ano, e o dicionário Cambridge foi de "hallucinate", com nova definição: quando a inteligência artificiaL (IA) alucina, produz informação falsa. Já o Oxford optou por "rizz", gíria derivada do meio da palavra "carisma".

Ilustração de Raphael Egel
Ilustração de Raphael Egel - Raphael Egel

Uma conhecida jornalista recentemente ponderou que sedução e charme, ligados a "rizz", é algo próprio do ser humano —ou será a nossa intensa necessidade de seguir relevantes e buscar papéis diante de tamanha revolução?

Mas confesso que há um assunto que me preocupa: o conhecimento. E os números mostram que as pessoas estão lendo menos. É grave.

A facilidade da inteligência artificial traz comodismo e deixa tudo mais raso. Recorrer a vídeos ou resumos numa rede social é mais prático e rápido, mas algo importante se perde no processo. Existem conteúdos incríveis nos streamings, mas ainda acho que um Machado de Assis ou um Mark Twain são fundamentais na formação de qualquer pessoa. Aliás, Twain diz uma frase muito boa num livro que adorei: "Ignorância: Uma História Global", do inglês Peter Burke. Diz Twain: "Somos todos ignorantes, só que sobre coisas diferentes".

O livro mostra que os critérios eram outros. A ignorância pode até ser positiva, há aquela tradicional máxima "não sabendo que era impossível, foi lá e fez", o conhecimento é amplo demais e Sócrates já sabia: "Só sei que nada sei". Precisamos combater a figura dos jovens ou qualquer um de nós com a cabeça enterrada numa tela, sem condições efetivas de avaliar se o que se lê é sério e verdadeiro ou criado para confundir. Aí a definição de Cambridge para "alucinar". Pior, as fake news estão associadas ao ódio —este cresce quando o conhecimento diminui.

O campo religioso está extremo, até perigoso. Pessoas tomam posições radicais, sem maiores reflexões e mergulhos na história. Defendem-se movimentos sem o devido contexto histórico-geográfico-político. É preciso saber quem é quem, e isso requer conhecimento, curiosidade, disposição e interpretação. Assim, o mundo estaria mais harmônico, disposto ao diálogo no arranjo das diferenças. Aprendo que instituições são mais importantes do que pessoas e, por isso, a relevância do conhecimento dos seus líderes. Diferenças precisam ser toleradas e distensionadas. Acredito que a habilidade humana ganha da digital.

A maioria dos algoritmos é ótima, mas não é saudável fazer só porque já se fez algo parecido. Eles colocam as pessoas em bolhas, é preciso lutar. Como seria se crianças escolhessem seus times baseados neles? A tradição, relação familiar, local de nascimento e outras emoções humanas são mais importantes para evitar a pecha de vira-casaca ou sofrer isolado sem o apoio dos "seus" de carne e osso.

A IA será mais utilizada no direito, facilitando a busca de jurisprudência ou análise de leis. Mas é melhor a decisão por humanos. Juízes cometem equívocos, mas errar é humano, e muitas vezes a forma como se pede desculpas, aí fora do tribunal, é tão marcante que já cobre a questão.

A IA deve ser aliada, não substituir o conhecimento. O analfabetismo digital é tão ou mais grave do que o funcional de ler e escrever. Máquinas vieram para ficar, com limites éticos e sem acomodamento. Não precisamos saber programar; que saibamos ler e interpretar o mundo. Sejamos aliados da IA, nunca servos. Não podemos desistir do conhecimento. Nem do charme humano.

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