Podcast mostra dificuldades de acesso ao aborto legal e acompanha rotina de um hospital

Último episódio de Caso das 10 Mil também analisa julgamento da descriminalização pelo STF e voto de Rosa Weber

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Brasília

O último episódio do podcast Caso das 10 Mil, publicado nesta quarta-feira (4), acompanha a rotina de um hospital referência no atendimento a vítimas de violência sexual e em abortos previstos na lei. Os desafios vividos pela instituição de Uberlândia (MG) exemplificam o estágio do debate sobre o tema no Brasil.

Ficou famoso em 2020, por exemplo, o caso da menina de 10 anos que engravidou depois de ter sido estuprada pelo tio várias vezes e encontrou uma série de barreiras para interromper a gravidez. Isso evidenciou as dificuldades que mulheres e meninas encontram para acessar o aborto mesmo nos casos em que ele é permitido por lei.

O caso da Clínica de Planejamento Familiar de Campo Grande, de 2007, ensejou a criação da Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto —e a expansão do direito à interrupção da gravidez ganhou um novo capítulo no fim de setembro.

O STF (Supremo Tribunal Federal) abriu o julgamento da ação que trata da descriminalização do aborto durante o primeiro trimestre de gestação. A análise iniciada pela ex-ministra Rosa Weber foi suspensa por um pedido de destaque do atual presidente da corte, Luís Roberto Barroso, e a discussão foi transferida para o plenário físico —ainda sem data para ser retomada.

Além de contar a história das mulheres que passaram pelo serviço de Uberlândia, o episódio final do podcast debate o voto de Rosa Weber e as perspectivas que ele abre para a discussão jurídica do tema. A transcrição do episódio está no final da reportagem.

Em o Caso das 10 Mil, as repórteres Angela Boldrini e Carolina Moraes investigaram por meses esse que se tornou o maior processo criminal sobre aborto do Brasil. O podcast explorou os corredores do Congresso em Brasília e viajou a Campo Grande, Belo Horizonte e Uberlândia para resgatar a história da clínica e debater os caminhos da discussão sobre direitos reprodutivos no Brasil.

Angela Boldrini e Carolina Moraes são repórteres da editoria de Podcasts da Folha. Angela apresentou a série narrativa Sufrágio, com apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting, e cobre desigualdade de gênero e temas relacionados aos direitos das mulheres. Carolina é produtora do Café da Manhã e apresentou o Expresso Ilustrada, podcast de cultura da Folha.

A edição de som do podcast é do Raphael Concli. A pesquisa foi feita com Isabella Menon, repórter da Folha, e a coordenação é de Magê Flores. A supervisão de roteiro é do Daniel Castro e a identidade visual do podcast é da Catarina Pignato.

Os episódios podem ser ouvidos no site da Folha e nas principais plataformas de áudio.

Podcast Caso das 10 mil
Capa do podcast Caso das 10 mil - Catarina Pignato

CASO DAS 10 MIL
onde nas principais plataformas de podcast

OS EPISÓDIOS DE CASO DAS 10 MIL

1. A Clínica
Como um consultório que realiza abortos em Campo Grande há 20 anos vira o centro de uma operação policial.

2. As Mulheres
Milhares de pacientes lidam com as repercussões pessoais, familiares e jurídicas do caso envolvendo a Clínica de Planejamento Familiar.

3. O Congresso
Em Brasília, o combate ao aborto se torna a prioridade de um parlamentar. Rapidamente, ele constrói uma bancada —e o caso das 10 mil vai para o centro dessa disputa.

4. A Médica
Quem é a anestesista Neide Mota Machado, denunciada pela prática de abortos clandentinos e que podia ser condenada a décadas de prisão.

5. O Júri
O processo contra as funcionárias da clínica chega ao Tribunal do Júri de Campo Grande. Na cidade, um grupo antiaborto se mobiliza para manter o caso na memória.

6. O Hospital
Em 2023, grupos da sociedade civil se organizam para a disputa sobre o direito ao aborto. Enquanto ativistas apostam no STF, associações religiosas tentam impedir procedimentos previstos na lei. O podcast acompanha a rotina de um serviço legal apontado como referência no país.

LEIA A TRANSCRIÇÃO DO SEXTO EPISÓDIO

O Hospital

Carolina: Antes de começar, um aviso. Essa série tem relatos de violência sexual, sofrimento psíquico e morte que podem ser um gatilho.

Na descrição deste episódio e no site da Folha você vai encontrar links de serviços de acolhimento pra vítimas de violência sexual.

[barulho de manifestação, com pessoas gritando]

Um grupo tenta arrombar a porta de um hospital, aos gritos. Três agentes da polícia militar de Pernambuco se colocam em frente ao prédio pra tentar conter as dezenas de pessoas.

Os homens e mulheres que tentam invadir a unidade de saúde de Recife tão quase todos de máscara. É 2020, e a gente tá atravessando o começo da pandemia.

Durante o primeiro semestre daquele ano, foram registrados mais de 17 mil estupros de vulneráveis. Há uma estimativa de que o número real seja bem maior —denúncias podem não ter sido feitas por vários motivos, entre eles o isolamento social que marcou aquele ano.

O grupo que se reúne na frente do Centro de Saúde Amaury de Medeiros, o Cisam, tá ali pra impedir que uma dessas vítimas consiga fazer um aborto legal.

Angela: O caso da menina de 10 anos que engravidou depois de ter sido estuprada pelo tio várias vezes virou notícia internacional —e colocou nos holofotes as dificuldades que mulheres e meninas encontram pra acessar o aborto no Brasil mesmo nos casos em que ele é permitido por lei.

A primeira barreira que a criança encontrou foi no sistema de saúde. Dois hospitais no Espírito Santo, o estado natal dela, alegaram não poder fazer o aborto.

Essa negativa de atendimento não é incomum no Brasil. Embora o aborto possa ser realizado por qualquer médico ginecologista ou obstetra, poucos hospitais fazem os procedimentos. Alguns estados brasileiros não têm nenhum serviço registrado no Mapa do Aborto Legal —uma iniciativa da ONG Artigo 19.

A menina capixaba teve que ir pra Recife pra ser atendida. Quando chegou na cidade, ela se deparou com uma multidão na porta do hospital.

[barulho de manifestação, com pessoas gritando]

Acabou tendo que se esconder no porta-malas de um carro para entrar no prédio. As informações sobre o caso da criança tinham sido vazadas na internet pela extremista de direita Sara Giromini, conhecida como Sara Winter.

Uma reportagem da Folha mostrou pouco tempo depois que a atuação de grupos antiaborto tinha chegado até o alto escalão do governo Bolsonaro. A então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tinha atuado pessoalmente pra tentar impedir o acesso da criança ao aborto.

A ministra mandou representantes do ministério e aliados políticos pra tentar adiar a interrupção da gravidez. Eles queriam transferir a menina pra uma cidade em São Paulo, onde os médicos manteriam o pré-natal e fariam o parto nela.

O aborto em casos de estupro e risco de vida pra gestante é legal no Brasil desde a década de 1940. Mas o primeiro serviço de interrupção legal da gravidez só foi fundado em 1989 —quase 50 anos depois.

Meninas, e também mulheres adultas, vítimas de violência sexual enfrentam uma via crúcis de negligência institucional, falta de informação e assédio moral quando procuram por abortos previstos na lei. Muitas delas recorrem à interrupção no mercado clandestino por causa disso. Outras não conseguem fazer o procedimento.

Relatos assim fazem parte da história da Clínica de Planejamento Familiar de Campo Grande —em que mulheres escolheram procurar a clandestinidade pra evitar o estigma no sistema de saúde.

Carolina: Em 2007, o caso de Campo Grande fez muita gente questionar se fazia sentido criminalizar mulheres por fazer abortos. Se mais de mil delas foram processadas por causa de uma única clínica em uma só cidade, não era preciso olhar pro tema de uma outra forma?

O caso das 10 mil ensejou a criação da Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, que coordena dezenas de organizações sociais pela descriminalização. A expansão do direito ao aborto ainda está em discussão, e ganhou um novo capítulo: o Supremo Tribunal Federal abriu julgamento e vai ter que decidir sobre o tema. Mas não é só a descriminalização que está em jogo em 2023. O acesso à saúde nos casos previstos na lei há 80 anos também está em disputa.

Carolina: Eu sou Carolina Moraes

Angela: Eu sou Angela Boldrini

Carolina: E esse é "O Caso das 10 mil": podcast da Folha que conta a história de 10 mil mulheres, de um acordo velado entre uma médica e uma cidade, e de como o aborto virou o centro de uma disputa política no Brasil que dura até hoje. Episódio 6: O Hospital.

Angela: Existem hoje no Brasil 115 serviços que fazem abortos nos casos previstos na lei. Esse dado é do Mapa do Aborto Legal. Um desses hospitais, que é referência no país, fica em Uberlândia, Minas Gerais.

Carolina: A cidade fica na região do triângulo mineiro, no oeste do estado. São cerca de 6 horas de carro de Brasília e umas 8 de Belo Horizonte. De ônibus, essa conta aumenta.

Angela: O Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia recebe pessoas do Brasil todo. Especificamente o Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual, que ficou conhecido como Nuavidas.

Em 2017, a Helena Paro, médica que comanda o núcleo, era professora da universidade de Uberlândia e já tinha 15 anos de ginecologia e obstetrícia. O único contato dela com o aborto nessa época era teórico. Mas aí chegou pra Helena uma paciente no hospital, uma vítima de estupro, que mudou o rumo da carreira dela.

Helena: E ela engravidou desse estupro e foi equivocadamente orientada dentro dos serviços de saúde que ela precisaria de fazer o B.O para poder ter direito a um aborto legal.

Angela: A mulher não queria fazer o boletim de ocorrência porque achava que, se o pai soubesse do caso, ia querer fazer justiça com as próprias mãos. Ela era estudante universitária na cidade e achava que a informação podia vazar se a polícia fosse informada.

Helena: E aí ela chega pra mim nessa unidade básica de saúde em que eu estava ensinando os alunos do quarto período do curso de medicina a realizar as consultas de pré-natal, ela chega na consulta de pré-natal, mas dizendo já que ia recorrer ao aborto clandestino, que ela foi encaminhada para o pré-natal já que na ideia dos profissionais de saúde ali ela tinha um teste de gravidez positivo. Ela chegou a mencionar, então ela falou com a enfermeira da unidade sobre a violência sofrida, mas foi orientada de que ela ia ter que prosseguir com o pré-natal, porque só ia ter direito ao aborto se fizesse B.O.

Angela: Desde 2005 uma portaria do Ministério da Saúde diz que, em caso de estupro, a gestante não precisa apresentar um Boletim de Ocorrência pra conseguir um aborto.

Mas muita gente não sabe disso até hoje. A Helena disse que teve contato até com delegadas de unidades de atendimento à mulher que diziam que o B.O. ou uma autorização judicial eram necessários.

Helena: E essa mulher ia recorrer ao aborto clandestino e eu a orientei que ela não precisava de correr risco de vida. E aí ela me foi encaminhada para o nosso hospital, que é o hospital de referência, que é onde eu trabalho, e infelizmente ela teve o seu acesso negado por uma alegação inconstitucional e antiética de objeção de consciência de equipe coletiva.

Angela: Objeção de consciência é quando um médico se recusa a fazer um procedimento porque ele é incompatível com alguma convicção moral dele. A objeção está prevista no Código de Ética Médica. Mas defensores do direito ao aborto afirmam que muitos hospitais fazem um uso indevido do mecanismo e que isso acaba ocasionando uma omissão de socorro.

Carolina: A objeção de consciência apareceu também na história da menina do Espírito Santo. Um levantamento interno feito no hospital de Vitória que se recusou a fazer o aborto nessa criança mostrou que 70% do corpo técnico de lá se declarava impedido de fazer o procedimento.

A Helena diz que um serviço não pode ser recusado por uma equipe inteira, como aconteceu com a paciente dela em 2017.

Helena: O hospital é um prédio de paredes, e um prédio não tem consciência. Então se todos da equipe têm objeção de consciência, o diretor do hospital, ele é responsável por achar alguém que não tem e contratar uma equipe que não tenha. E assim ela entrou com uma representação junto com a assessoria jurídica que a gente foi se formando.Foi se formando um grupo de mulheres ali para ajudar essa paciente, essa outra mulher.

Carolina: Esse grupo chegou no Ministério Público Federal, e a promotoria recomendou que o hospital fizesse o aborto legal da paciente da Helena. Mas não só: eles deram um prazo de 60 dias pra que uma equipe de atendimento às vítima de violência sexual fosse formada ali no Hospital das Clínicas. Foi assim que o Nuavidas começou.

Angela: O Nuavidas é um núcleo que atende qualquer vítima de violência sexual, não só em casos em que é preciso fazer um aborto. Os atendimentos presenciais são feitos uma vez na semana.

A gente passou dois dias acompanhando o serviço no hospital, em julho deste ano. Nesse período, a Helena tinha dois procedimentos agendados. Ela também ia fazer o teleatendimento de outras três mulheres.

[Helena] Eu marquei por meia hora porque essa paciente aqui é uma paciente que teve um aborto por telesaúde semana passada, ela sangrou, mas ela ainda está com sintomas.

No caso do Nuavidas, o teleatendimento funciona assim: as mulheres têm que ir até o hospital retirar o misoprostol, que é conhecido pelo nome comercial de Cytotec. Elas usam a medicação em casa —e o acompanhamento médico é feito por consultas de vídeo e mensagens no WhatsApp.

A Organização Mundial da Saúde diz que o aborto com medicamentos pode ser feito em casa, e é considerado um método seguro pra gestações até pelo menos 12 semanas. A organização orienta que o misoprostol pode ser usado de duas formas: sublingual ou vaginal. A quantidade vai variar de acordo com a paciente.

As mulheres que fazem uso dessa medicação normalmente sentem cólicas e um sangramento parecido com a menstruação ou um pouco mais intenso. Os médicos do Nuavidas monitoram essas pacientes pra identificar possíveis complicações —como um sangramento maior do que o esperado—, e também pra confirmar se o aborto deu certo. Isso porque, em alguns casos, é preciso repetir a dose do medicamento pra conseguir interromper a gestação.

Carolina: Das mulheres que a Helena ia atender pessoalmente naquele dia, uma era vítima de violência sexual e a outra corria risco de vida. Nenhuma das duas era de Uberlândia. Uma tinha ido do interior de São Paulo pra Uberlândia de ônibus. A outra foi de avião, saindo do Rio de Janeiro.

Várias mulheres chegam a Uberlândia porque o serviço da Helena é uma referência, mas esse não é o único motivo.

Algumas pacientes vêm de grandes centros porque não conseguem atendimento onde moram. E outras querem passar pelo procedimento longe de casa.

Helena: Eu estava me lembrando de no mínimo duas, três pacientes que vinham, vieram do Sul, até mesmo do estado de São Paulo, que tinham serviços próximos às suas casas, mas viajaram mais de dez horas de ônibus para chegar em Uberlândia, porque eram pessoas conhecidas e que não queriam, mesmo não estando fazendo um crime, estando dentro da legalidade, tendo sido estupradas, não queriam ter acesso aos serviços próximos porque tinham medo de que encontrassem alguém conhecido no hospital, no serviço e que isso vazasse de alguma maneira.

Carolina: Elas não se preocupam à toa. A quebra de sigilo médico em hospitais é um problema que a Helena já viu acontecer.

Um dos médicos do Nuavidas contou pra gente que outros colegas do próprio hospital levantaram essa questão num grupo geral de WhatsApp. Alguns deles defenderam uma portaria editada no governo Bolsonaro que obrigava os médicos a avisarem a polícia em caso de aborto por estupro.

Essa era uma demanda antiga dos movimentos antiaborto. Lembra que uma norma do ministério da Saúde lá de 2005 estabeleceu que não era necessário boletim de ocorrência? A portaria do Bolsonaro não só colocava essa exigência como instituía outras medidas —exigir que os médicos informassem as mulheres que elas podiam ver o feto numa ultrassonografia, por exemplo.

O entendimento de muitos serviços foi de que a exigência do B.O. não tá na legislação —e que a norma não poderia se sobrepor a isso. Então muitos continuaram atuando como faziam antes. Apesar disso, a portaria foi muito criticada porque organizações ligadas aos direitos humanos dizem que ela ajudou a disseminar confusão e dificultar o acesso ao aborto legal —a norma terminou sendo revogada em janeiro de 2023 pelo governo Lula.

Angela: A maioria das pacientes que chega no núcleo de atendimento de Uberlândia não sabe que tem direito a abortar, principalmente em casos de risco de vida. E muitas já tinham tentado fazer o aborto na clandestinidade.

Helena: Sendo passadas para trás, sofrendo golpes, golpes de internet, golpes de WhatsApp… Correndo o risco inclusive de morrer buscando, correndo risco até de morrer buscando abortos em clínicas clandestinas. Hoje a gente vê na maior parte a busca por medicamentos. E aí, no mercado clandestino, além desses medicamentos terem um preço exorbitante, que coloca só as mulheres de classe média alta e classe alta com acesso a essas medicações, há falta de garantia de qualidade desses medicamentos. E aí na internet, depois de alguns golpes, elas conseguem achar ONGs que conseguem dizer: "Olha, você tem direito, a gente que conhece a rede se serviços e pode encaminhar essas mulheres aos serviços".

Angela: Esse foi o caso da paciente do Rio de Janeiro. A gente vai chamar ela de Fernanda.

Carolina: A Fernanda é uma profissional da área da saúde. Ela cria uma criança pequena sozinha e descobriu no ano passado um tumor benigno grande. A Helena explicou pra gente que o caso dela é considerado risco de vida porque a gestação pode levar a uma ruptura do tumor, por exemplo.

Angela: A mulher chegou a tomar misoprostol comprado no mercado clandestino duas vezes antes de chegar até a Helena. Ela também procurou clínicas de aborto na internet —mas desconfiou de golpe e teve medo das condições que poderia encontrar.

Carolina: Foi conversando com uma organização de direitos reprodutivos que achou online que a Fernanda soube que tinha direito a um aborto legal. Mas que provavelmente os serviços disponíveis no Rio de Janeiro não atenderiam ela rápido o suficiente. Ela podia já estar com um tempo gestacional avançado pra fazer o procedimento, ou podia ter sofrido complicações por causa da gravidez de risco.

A gente procurou a secretaria de saúde do estado do Rio pra saber quais serviços tão em funcionamento e qual a estimativa de tempo pra atender as pacientes e realizar o procedimento. Eles não nos responderam até a conclusão desse episódio.

As organizações que a Fernanda achou na internet indicaram o Nuavidas. Um dos requisitos pra conseguir interromper uma gravidez é o exame de ultrassom. Isso porque o médico precisa saber se aquela gestação tá dentro do útero.

A Fernanda contou pra gente que essa parte foi muito difícil. O momento do ultrassom fez ela lembrar da gravidez anterior, que ela levou até o final. Foi por causa do filho que ela decidiu interromper essa segunda gestação. Ela não queria correr o risco de deixar ele sozinho.

Angela: Uma das perguntas padrão do serviço de Uberlândia é sobre a religião das pacientes. A Fernanda, por exemplo, é espírita.

Helena: A pergunta sobre religião sempre é uma coisa que a gente faz, assim, na hora de identificar, né, no começo da conversa.

Angela: Aqui, a Helena de novo.

Helena: Até para saber como, com que palavras eu vou usar com a paciente na hora de fazer a orientação. Inclusive para entender o grau de sofrimento ou não sofrimento, se a religião dela interfere na decisão dela… Não é na decisão, mas no que ela sente em relação a essa decisão, porque a decisão está feita.

Angela: São poucos os casos em que as mulheres chegam com dúvidas.

Helena: Nós já tivemos uma, já tivemos de gestante adulta, uma mulher que ela já estava fazendo o tratamento para engravidar e ela tinha certeza que não era do parceiro, que era da violência que ela sofreu na rua, duas horas da tarde, indo e voltando do almoço para trabalhar numa rua super movimentada aqui na cidade. E ela decidiu que ela ia manter a gravidez independentemente, que era um projeto de vida dela e ela estava disposta a bancar uma separação do marido se ele não bancasse com ela.

Angela: O serviço de Uberlândia, vale a gente dizer, é um ponto fora da curva no país. Não só pelo preparo técnico que eles têm pra fazer vários tipos de procedimento e pela expertise da Helena.

O atendimento começa com a Aline Cardoso, a secretária do Nuavidas. Ela é geralmente a primeira pessoa com quem as pacientes têm contato.

Aline: O jeito ou a forma que elas procuram o serviço é sempre o mesmo. Elas procuram pela internet, primeiro, elas vão pesquisar pela internet. Aí elas acha o telefone e liga para saber como que funciona o serviço.

Angela: E a Aline sempre tem na mão uma lista muito completa de lugares que fazem abortos no país todo. Porque muitas mulheres que ligam pro Nuavidas tão muito longe de Uberlândia e não sabem nem onde procurar um serviço mais próximo.

Aline: A maioria da dúvida é se precisa de ter um boletim de ocorrência, se precisa de ter alguma documentação, porque a maioria tem muito medo de se comprometer com o violentador, entendeu? Elas têm muito medo do que pode acontecer se ela estiver aqui expor quem fez isso com ela. Medo tipo de tudo, né? De a pessoa voltar, de ameaçar a família e tudo mais. Então assim, a maioria tem muito medo disso.

Angela: Várias mulheres que chegam lá já foram empurradas de um lugar pro outro por médicos se negando a fazer o procedimento. E também já tiveram que contar a mesma história de violência muitas vezes.

A Aline então explica pra elas que não é preciso fazer um boletim de ocorrência. Também diz que os casos sempre são notificados ao poder público, de maneira sigilosa. E que aquilo é importante pras autoridades terem dados e formularem políticas públicas pra diminuir os casos de violência e também pra atender as mulheres que precisam.

Aline: E elas ficam tranquila, sabe, quando você fala, conversa com ela, você vê que elas até mudam a voz. Aparece aquela sensação tipo assim, de alívio.

Carolina: As pacientes do Nuavidas são atendidas por médicas, psicólogas e assistentes sociais. O protocolo de atendimento também exige que elas preencham uma série de termos.

[Angela] São os termos. Esse de violência sexual. Esse aqui são as autorizações de coleta. Isso é que é o parecer técnico. Aqui termos de consentimento para interrupção de grandes ações de violência sexual.

Carolina: No hospital, as vítimas de violência sexual têm que escrever à mão o que aconteceu com elas cortar e assinar um termo de responsabilidade em que afirmam falar a verdade.

Nesse papel, elas declaram que estão cientes de que falsidade ideológica é crime e de que o aborto, em casos não previstos por lei, também.

A gente ouviu a Helena pedir desculpa pra uma das mulheres na hora de assinar esse termo.

Helena: Eu sempre peço desculpa quando eu vou pedir para a paciente assinar aquilo. No meu ponto de vista, o termo de consentimento é a única coisa que precisa que precisaria de ser exigida dessas mulheres, destas pessoas em situação de violência sexual, e risco de vida, e anencefalia. Mas na situação da violência sexual, ainda mais se exigir que a pessoa escreva uma coisa que ela já falou, e às vezes ela já falou muitas vezes. Aqui a gente tenta colher uma vez só a história, mas você já falou na delegacia, ela já foi num outro serviço de saúde que não era referência… Aí, entende?

Carolina: O serviço de Uberlândia cresceu de 2017 pra cá. Hoje ele tem uma equipe multidisciplinar de 40 pessoas. Isso fez com que o Nuavidas passasse também a ser conhecido por grupos que são contra o aborto. E que organizam manifestações, e até depredação, na porta de hospitais.

Angela: O trabalho da Helena começou a atrair a atenção de grupos conservadores durante a pandemia, quando ela implementou o primeiro serviço de aborto por telemedicina do país.

O método foi uma alternativa que o Nuavidas encontrou pra manter os atendimentos enquanto o risco de contágio das pacientes e da equipe era alto. No serviço, a telemedicina é usada em casos de gravidez de até 9 semanas.

A Helena faz parte de uma rede de médicos que atuam em serviços de aborto legal. E pra difundir as experiências do Nuavidas com a telemedicina, ela criou uma cartilha de procedimentos. Só que isso foi parar na mão de grupos antiaborto.

Em 2021, um vereador de Uberlândia propôs uma moção de repúdio à médica por causa disso.

A Helena disse que não se abala muito com esse tipo de iniciativa. Mas que ficou magoada com ataques que vieram de dentro da classe médica.

Helena: E aí existem ataques explícitos, como é, por exemplo, eu entendo a abertura do processo ético profissional no Conselho Regional de Medicina como um ataque explícito externo. Uma tentativa de me amedrontar, de que, como se eu parasse as coisas, não continuasse.

Carolina: O CRM de Minas Gerais abriu um processo contra ela em 2022.

Helena: Eu entendo fazer uma sindicância, né? Fizeram sindicância, vieram aqui, veio um conselheiro, entrevistou todo mundo que trabalha no Nuavidas, viu praticamente todos os nossos prontuários relacionados. Porque o sindicante pode fazer isso. O fiscal do conselho é um médico e ele pode ver os prontuários pq também tem dever de sigilo. Verificou que não tinha nenhum problema. E diante de um relatório de um fiscal do conselho que vem e vê que está tudo certo, e mesmo assim abre se um processo ético profissional.., E aí eu nem sei mais quantos artigos a relatora do processo coloca que eu estou infringindo no parecer dela. Infringindo a moral, usando o meu conhecimento médico para infringir a moral e os bons costumes e favorecer o crime...

Carolina: O argumento do processo se baseia numa norma de 1998, que diz que o misoprostol só pode ser usado por hospitais cadastrados. O CRM defendeu que isso significava que o medicamento tinha que ser usado dentro da unidade de saúde.

Mas os procedimentos de telemedicina têm respaldo em norma da Anvisa, de 2020. Ela permite o uso remoto de algumas drogas restritas, incluindo o misoprostol.

A gente entrou em contato com o CRM de Minas e com o Conselho Federal de Medicina e não teve resposta.

Angela: A Helena chegou a se afastar do Nuavidas por causa da pressão. Ela teve um caso de burnout. Mas o serviço continuou funcionando.

Helena: As pessoas acham que se dificultarem muito a nossa vida, a gente vai desistir e a gente vai parar. E a gente não vai parar. Eu acho que todo mundo que trabalha no Nuavidas, em graus diferentes, entende que esse é o nosso papel. A gente tem o privilégio de ter sido formado em instituições boas, instituições públicas ou privadas, mas que nós temos a obrigação de devolver o nosso conhecimento para as pessoas mais vulneráveis.

Angela: Um dos casos mais emblemáticos de ataques a médicos que fazem aborto legal no Brasil aconteceu em 2009.

A história é muito parecida com a da menina do Espírito Santo, de 2020. O caso de 2009 aconteceu em Pernambuco. Uma criança de 9 anos engravidou depois de ter sido violentada pelo padrasto.

Ela teve acesso ao aborto legal —sob protestos de grupos conservadores e principalmente autoridades católicas. A equipe médica e a família da menina foram excomungadas pela Igreja.

O médico responsável por aquele atendimento voltou aos holofotes 11 anos depois. O obstetra Olímpio Moraes era diretor do hospital onde a menina do Espírito Santo conseguiu ser atendida.

Ele deu uma entrevista pro podcast Café da Manhã na época e contou como foram as manifestações na frente do hospital em 2020.

[Olímpio] O segurança ligou "dr olímpio tá acontecendo alguma coisa aqui não sei o que, tem um bocado de gente aqui na frente e tem uma deputada". Aí eu fiquei preocupado e resolvi ir pra lá.

Embora essa não fosse a primeira vez que o Olímpio lidava com manifestantes tentando impedir abortos legais, ele disse que se impressionou.

[Olímpio] A primeira vez que eu fui impedido de entrar no trabalho, que eu sou diretor e trabalho há 31 anos, né? Nunca pensei que um dia eu não ia conseguir entrar no serviço ou no trabalho.

Carolina: A Helena Paro lida com resistências ao trabalho dela dentro do hospital de Uberlândia.

A paciente com quem a gente conversou, a Fernanda, do Rio de Janeiro, teve que passar a noite no hospital. Uma complicação na primeira tentativa do procedimento fez com que ela tivesse que ficar em observação. A gente distorceu a voz dela para manter a confidencialidade preservada.

Fernanda: Ontem aqui, depois que a doutora foi embora, o ambiente ficou completamente hostil, e eles me deixaram ali no corredor com lugares vagos...

Carolina: A Helena deixou a medicação da Fernanda prescrita —mas o remédio não chegou pra paciente na hora determinada. Ela só foi receber depois da meia-noite, quando uma residente chegou e foi checar como ela tava.

Fernanda: E aí essa mesma residente conversou com a doutora hoje de manhã e disse que ela foi pedir informação do porque que eles não estavam me assistindo com o básico, que seria trazer a minha medicação. Eles disseram que "esse tipo de paciente eles não mexem".

Carolina: A Fernanda diz que se sentiu muito mal de ser tratada daquela maneira.

Fernanda: Então, o que eu falei com a doutora hoje, eu ouço e me entristeço, mas é uma coisa que você engole, porque você está aqui dentro de uma situação que você precisa.

Carolina: Nós procuramos o hospital para comentar o caso da Fernanda, mas eles não nos responderam até a conclusão desse episódio.

Helena: A gente vê que isso faltou muito na formação dos nossos colegas e que alguns estão abertos para aprender como eu aprendi, porque eu também...

Angela: Essa é a Helena Paro de novo.

Helena: Não vou falar que fui objetora, acho que eu nunca fui objetora, mas eu já, tem uma lembrança de quando eu era residente muito novinha, primeiro ano, que eu atendi uma paciente que estava vindo de Santos de ônibus, porque provavelmente ela conseguiu um aborto clandestino lá e ela veio em choque séptico, sangrando com a pressão baixa. E a hora que eu abro vou fazer o exame e eu vejo um cano dentro do útero dela e eu me puno até hoje por esse dia por ter falado "Você sabe que você pode ser presa". Eu não devia ter falado aquilo. A paciente tava morrendo quase, né? Ela sobreviveu, mas ela tava numa situação de muita vulnerabilidade, tanto emocional quanto física. E é isso que a gente meio que aprende dentro de um ambiente que odeia as mulheres.

Angela: A Helena acha que o estigma só vai começar a mudar se o tema for debatido como uma questão de saúde pública.

Helena: Por que, aí, o que nossa Constituição e que nossa legislação tá dizendo? Tá dizendo que uma mulher ela vai ser discriminada, porque ela não tem igualdade de condições em relação a uma pessoa que não pode engravidar. E que uma questão que é um cuidado em saúde, e que é um fato da vida reprodutiva de uma cada, hoje, no Brasil, uma a cada sete mulheres até 39 anos, ou meio milhão de mulheres no Brasil por ano.

Será que meio milhão de mulheres elas precisam estar penalizadas, na cadeia, julgadas por uma questão que é um fato, e é milenar! A interrupção da gravidez acontece, a gente estuda isso na sociedade egípcia, então essa é uma questão milenar. Sempre acontece, né? [respira fundo] É triste.

Angela: Da época do caso das 10 mil pra cá, o perfil de quem pede o endurecimento da lei ganhou novos atores. Em 2005, quando o Congresso tentou votar um projeto de lei que descriminalizaria o aborto, a principal força contrária eram os católicos.

Tanto é que o Lula faz uma carta aberta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, pra dizer que não ia se meter na questão do aborto naquele ano.

Carolina: Dezessete anos depois, durante a campanha eleitoral de 2022, o Lula fez mais uma carta aberta em que falava sobre o aborto. Dessa vez, os destinatários eram os evangélicos. Ele escreveu assim: "Nosso projeto de Governo tem compromisso com a vida plena em todas as suas fases. Para mim a vida é sagrada, obra das mãos do Criador e meu compromisso sempre foi e será com sua proteção. Sou pessoalmente contra o aborto e lembro a todos e todas que este não é um tema a ser decidido pelo Presidente da República e sim pelo Congresso Nacional".

Angela: A Frente Parlamentar Evangélica surgiu em 2003, ano em que 60 parlamentares autodeclarados protestantes tomaram posse no Congresso. 20 anos depois, essa mesma frente tem 246 integrantes. Eles representam 42% da Câmara e 32% do Senado –uma pesquisa Datafolha estimou que, em 2020, os evangélicos eram 31% da população brasileira.

Carolina: Esse grupo também ficou mais presente no judiciário. Uma reportagem da revista Piauí contou como a Associação Nacional de Juristas Evangélicos atua no STF.

A Anajure foi fundada em 2012 –e ganhou ainda mais força quando a Damares Alves, que já foi membro da associação, se tornou ministra no governo Bolsonaro.

A entidade costuma participar de julgamentos como amicus curiae no Supremo Tribunal Federal. Essa é uma ferramenta pra que um terceiro entre numa ação sem ser uma parte dela. Um amicus curiae apresenta informações e argumentos pros julgadores sobre um determinado tema –geralmente essa figura é usada em debates com mais repercussão na sociedade.

O texto da Piauí, que é de 2020, conta que a Anajure aguardava para ser admitida como amicus curiae em nove ações no Supremo Tribunal Federal naquele momento. O grupo já era mais ativo no STF do que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, por exemplo –que participou como amicus curiae também em nove ações, mas ao longo de quase 70 anos, de 1952 a 2020.

Não é como se a atuação católica tivesse saído de cena. Ela ainda é forte, e nos últimos anos ganhou companhia. No fim, a pauta antiaborto é uma das agendas que une a maior parte dos católicos e evangélicos no Judiciário… e também no legislativo.

[Anúncio no Congresso] eu vou anunciar aqui o nome dos componentes da Mesa Diretora da Frente Parlamentar em Defesa da Família e da Vida. Presidente, deputado Diego Garcia. Primeira vice-presidente, senadora Damares Alves...

Diego Garcia, um deputado católico do Republicanos, e Damares, agora senadora pelo mesmo partido –e evangélica–, foram apresentados no evento de reinstalação da bancada em junho deste ano. A reinstalação é obrigatória em todo novo começo de mandato do Congresso.

O evento aconteceu horas antes da Marcha Nacional pela Vida, em Brasília. Um salão do Congresso ficou cheio de pessoas com camisetas e bandeiras com imagens de feto. Um estande vendia livros que questionam a qualidade de dados de organizações médicas e feministas sobre a interrupção da gravidez. E ao lado deles tinham caixinhas com fetos de borracha. Todos recebiam na entrada um papel com argumentos de por que é importante defender que a vida começa na fecundação, como as mulheres são afetadas pela interrupção da gravidez…

É um roteiro conhecido. Tudo isso podia ter acontecido 18 anos atrás, quando a bancada antiaborto foi instalada pela primeira vez. Não fosse pelo segundo motivo do evento, anunciado pelo deputado Diego Garcia.

[Diego Garcia] Hoje estamos lançando também esse livro, de minha autoria, com a contribuição e a participação de lideranças importantíssimas na luta da defesa da vida que trata sobre a ADPF 442.

Essa é hoje a principal disputa em torno do direito ao aborto no Brasil. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, conhecida como ADPF 442.

Debora: Uma palavra assim parece muito complexa, mas tem um conteúdo razoavelmente simples no campo jurídico, simples quanto ao pedido. É quando você tem uma demanda e você faz o pedido à corte, em que se afirma que há direitos fundamentais que estão sendo violados ou desrespeitados.

Angela: Esta é a antropóloga Débora Diniz. Ela é a coordenadora da pesquisa nacional do aborto, que é referência do tema no país, e uma das principais vozes na defesa da descriminalização.

Essa ação foi apresentada ao Supremo em 2017 pelo PSOL. O partido entende que o Código Penal brasileiro fere vários direitos fundamentais das mulheres. É o que também argumentam movimentos da sociedade civil que foram admitidos como amicus curiae da ação.

Debora: Então nós queremos fazer uma leitura conforme a Constituição, a Constituição de 88. Ali tem o direito à saúde, tem o direito à igualdade de gênero, estar livre de tortura, de maus tratos. Então o que a ADPF está pedindo é uma leitura do Código Penal dizendo: "Olha, o Código Penal, ele é inconstitucional, ele viola proteções fundamentais".

Angela: Os artigos que a ação questiona são o 124 e o 126 —que tratam de autoaborto e de aborto em terceiros com consentimento da gestante. Justamente os que foram usados pra processar as pacientes e as funcionárias da Clínica de Planejamento Familiar de Campo Grande.

O PSOL pede que a interrupção voluntária da gravidez seja descriminalizada durante o primeiro trimestre —ou seja, até as 12 semanas de gestação.

Segundo levantamento da professora de direito da FGV Eloísa Machado, essa é a ação com a maior quantidade de pedidos de amicus curiae da história do Supremo: são 70. Desses, 32 foram admitidos.

Além dos grupos a favor da descriminalização, também estão na disputa os que são contra --como a própria frente parlamentar contra o aborto, a CNBB e a Anajure, a associação de juristas evangélicos.

Edna: Biblicamente, nós entendemos que só Deus é quem pode alterar a vida. Dar a vida ou tirá-la.

Carolina: Essa é a Edna Zilli, presidente da Anajure. Quando a gente conversou, a associação tinha acabado de lançar uma carta com argumentos contra a ADPF. Por exemplo, que a Constituição assegura o direito à dignidade humana e à vida —e que o feto já seria uma— e que os três casos em que o aborto é legal no país são suficientes. Também defende que a solução de um problema social só vai melhorar com redes de apoio e assistência às mulheres durante toda a gestação.

A Anajure também avalia que não é papel do Supremo Tribunal Federal analisar uma questão como essa.

Edna: O STF está tomando uma prerrogativa que é do Legislativo. E se o Legislativo não votou, não tem trabalhado nesse sentido, é porque a população e o Legislativo, que são os nossos representantes eleitos, entendem então que a população brasileira, em sua maioria, não concorda com o aborto.

Carolina: Esse é um dos principais argumentos dos que defendem que a ação deve ser rejeitada pelos ministros do STF. A Advocacia-Geral da União, que representa o governo federal, também disse que o tema deveria ser tratado no Congresso.

Angela: Uma série de outras organizações e advogados discordam dessa visão.

Débora: Cabe ao Judiciário, cabe à Suprema Corte a aplicação da Constituição. É um dever do Supremo Tribunal Federal a garantia do direito à saúde, a garantia de proteção a direitos fundamentais.

Angela: Aqui a antropóloga Débora Diniz de novo. Ela argumenta que não seria a primeira vez que o tribunal toma uma decisão em relação ao tema —e que ele está no papel de fazer isso.

Em 2012, o STF decidiu pela ampliação do direito ao aborto no caso da anencefalia do feto.

A Débora e a organização que atua na defesa de direito das mulheres que ela ajudou a fundar, a Anis, participaram dos debates dessa ação.

Débora: Então, se você pergunta a mim o que levou essa ação há 20 anos e agora, novamente, trabalhando com outras pessoas, jamais foi porque esse tema não avança no Congresso Nacional. Foi porque é dever do Supremo Tribunal Federal, é dever de uma democracia com três diferentes poderes a atuação de cada um deles para a proteção de direitos fundamentais. Então cabe ao STF.

Carolina: Na votação da anencefalia, alguns ministros que ainda estão na corte votaram pela descriminalização nesse caso. Foram os ministros Gilmar Mendes, Carmen Lucia, Luiz Fux e Rosa Weber. O placar final teve 8 votos a favor da descriminalização e 2 contra.

O ministro Luís Roberto Barroso, que assumiu a presidência do STF no lugar da Rosa Weber no fim de setembro, também tava na ação sobre a anencefalia —mas como advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde, autora da ação. O Barroso defendeu, abre aspas, "o direito de não ser um útero à disposição da sociedade, mas de ser uma pessoa plena, com liberdade de ser, pensar e escolher".

Angela: Ele também mostrou a visão dele sobre o tema já como ministro, num julgamento de um habeas corpus em 2016. Duas pessoas tinham sido presas, acusadas de atuar numa clínica de aborto. Ele disse no processo que uma mulher não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada, e que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não deveria ser considerada crime.

Agora, o STF se colocou de novo no centro da discussão sobre o aborto. A ministra Rosa Weber, que foi a relatora da ADPF 442, começou a votação do tema em 22 de setembro, poucos dias antes de se aposentar da corte por ter feito 75 anos.

[Reportagem da TV Globo] A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Rosa Weber, votou pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

Rosa Weber publicou as 103 páginas de argumentação no plenário virtual do STF.

A ministra rebateu logo no começo a ideia de que esse é um tema restrito ao Congresso. Segundo ela, a Constituição define que "nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário".

Pra Rosa Weber, a questão do aborto é colocada na arena social e política a partir de duas abordagens. Uma é orientada pela moralidade, e se ampara numa ética religiosa. A outra trata o tema pelo caminho jurídico e pressupõe a existência de um direito à vida desde a concepção. Mas segundo a ministra, essas maneiras de encarar a questão dificultam o debate democrático. E a esfera moral privada não pode ser confundida com a esfera moral pública.

Carolina: Ela lembra que não há um consenso sobre quando a vida começa nem na ciência, nem na religião. E invoca o artigo 5º da Constituição, que diz assim:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade

Daí a ministra segue: esses direitos todos são assegurados aos brasileiros. Mas quem são, afinal, os brasileiros, de acordo com a constituição?

"A Constituição define como brasileiros os nascidos no Brasil, ainda que de pais estrangeiros, ou os nascidos no estrangeiro de pai ou mãe brasileiro, desde que qualquer um esteja a serviço do Estado."

Os nascidos no Brasil, diz o trecho destacado por ela. São sujeitos de direitos aqueles que nasceram.

Outro ponto levantado pela ministra é que o direito da mulher a uma vida digna está previsto na Constituição.

Flávia: A ministra tece no seu voto um entendimento que me parece fundamental para juntar direitos fundamentais e democracia. Que é: "Olha, não dá para a gente ter uma penalização que incide só sobre as mulheres, que limita a sua liberdade, algo que é tão fundamental a elas. E não dá para a gente ter uma penalização que incide de maneira tão agravada, em termos dos seus efeitos, sobre as mulheres pobres e negras".

Carolina: Essa é a Flávia Biroli, professora de ciência política da Universidade de Brasília. Pra ela, a fundamentação do voto da Rosa Weber elevou o nível do debate sobre aborto no país.

Entre vários aspectos que a Flávia destacou do argumento da ministra está a ideia de uma justiça social reprodutiva.

Flávia: A noção de justiça reprodutiva, ela tem uma tradição nos feminismos e em particular nos movimentos de mulheres negras, que ressaltam algo que me parece fundamental, que é a conexão entre o direito à maternidade e o direito ao aborto. Então, esse direito a tomar decisões sobre a própria capacidade reprodutiva, de maneira que corresponda à dignidade da vida da pessoa e que corresponda à liberdade de construir a vida de acordo com os valores vivenciados no âmbito da moral privada de cada mulher, de cada pessoa...

Carolina: Muitas coisas envolvem as políticas públicas que asseguram esse direito. Por exemplo, acesso a informação, a medicamentos de qualidade, a métodos contraceptivos, a um acompanhamento qualificado da gestação, e também ao aborto.

Flávia: Então, a noção de justiça reprodutiva ela permite dar conta da complexidade das decisões na vida reprodutiva das mulheres. Me parece que nesse processo de moralizar, de julgar as mulheres, o que falta é empatia e reconhecimento da complexidade da tomada de decisões por uma pessoa, uma pessoa que tem a sua integridade psíquica, física e que está localizada numa vida social muito concreta, em relações muito concretas. E é assim que as mulheres tomam decisões. A moral privada, ela não é abstrata, ela é muito concreta, ela tem relação como a vida acontece. Quando ministra, traz o social para a noção de justiça reprodutiva, ela adiciona aquilo que já está na tradição da justiça reprodutiva, no meu entendimento, que é justamente a concretude dos contextos de tomada de decisão, e a concretude dos contextos em que pode haver uma falha no acesso a anticonceptivos, pode haver uma falha dos próprios anticonceptivos no seu uso, que é um contexto social concreto, né.

Angela: Depois do voto da Rosa Weber na ADPF 442, o ministro Luis Roberto Barroso pediu destaque --ou seja, que o julgamento seja transferido pro plenário físico do Supremo. Ele vai ser o responsável por agendar esse julgamento.

O voto da ministra já provocou reações do Congresso Nacional. Líderes da Câmara e do Senado dizem que a corte está invadindo a atribuição deles de legislar. Por isso, parlamentares querem apresentar propostas para tratar de vários temas que estão em discussão no STF, entre eles o aborto.

O julgamento também aproxima o Brasil de um grupo de países da América Latina em que o tema foi discutido recentemente nas cortes constitucionais. É o caso da Colômbia, que em 2022 descriminalizou o aborto até a 24ª semana, e do México, que em setembro de 2023 aprovou a descriminalização em todo o país.

Flávia: Acho que tem um ponto que é interessante, que é o fato de que a gente tenha um voto favorável tão bem fundamentado como o da ministra Rosa Weber em um contexto em que dois países importantes da América Latina descriminalizaram o aborto por decisões das suas cortes constitucionais, Colômbia e México. Isso é importante porque a gente tem uma construção mesmo de uma compreensão do sistema jurídico, de garantias às mulheres, de proteção à vida digna das mulheres na região, que vai fazer história, já está fazendo. Então, o Brasil pode ou não ser parte dessa história. Acho que o voto da ministra Rosa Weber já é uma parte importante dessa história.

Angela: A ministra Rosa Weber disse no voto que, quando a criminalização do aborto foi definida no Brasil, 80 anos atrás, "nós mulheres", palavras dela, "não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática".

Durante essas décadas, convenções internacionais definiram que a restrição ao aborto não pode colocar a vida de mulheres em risco, ou interferir na vida privada delas. Interferências que são comuns à criminalização, como as que aconteceram no Caso das 10 Mil.

Carolina: A ministra ainda escreveu o seguinte: "A punição sofrida pelas mulheres em situações humilhantes [...], como ser presa numa cama de hospital na sequência de procedimento de emergência obstetrícia, provoca uma indagação. É esta a cena que nos afirma como sociedade democrática constituída sobre os pilares dos direitos fundamentais e da racionalidade jurídica?".

Quinze anos atrás, a então ministra da pasta das mulheres fez uma pergunta parecida. A Nilcéa Freire disse numa sessão do Congresso que o caso da clínica da Neide Mota era emblemático porque confrontava a sociedade brasileira com uma pergunta com a qual ela não é confrontada. Uma mulher que aborta deve ser presa? Ela deve ser punida?

É essa pergunta que o STF vai ter que responder.

Uma em cada 7 mulheres com menos de 40 anos já abortou no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto. E é por isso que, na época em que as pacientes foram investigadas pelos procedimentos na clínica de Campo Grande, a Nilcéa disse que poderia ser a irmã, a mãe, a namorada, ex-namorada, a amiga, a vizinha de qualquer um de nós nessa situação. E que ela queria saber como é que cada um agiria nessas circunstâncias.

É essa pergunta que cada um de nós tem que responder.

Carolina: Eu sou Carolina Moraes e a apresentação, roteiro e produção d’o Caso das 10 mil são meus e da Angela Boldrini.

Angela: A pesquisa foi feita junto com a Isabella Menon e a edição de som é do Raphael Concli. A coordenação é da Magê Flores e do Daniel Castro, e a identidade visual é da Catarina Pignato.

Carolina: Você encontra fotos sobre esse caso e a transcrição deste e de todos os outros episódios no site da Folha.

A gente quer agradecer aos jornalistas Silvia Frias, Marta Jesus e Fernanda Brigatti e jornalista Evilasio Jr., à advogada Marcella Meira Rezende, a Sonia Correa, Margareth Arilha, Cristião Rosas, Neyla Ferreira Mendes, e à equipe do Nuavidas pelas entrevistas. E também aos colegas da equipe de podcasts da Folha, Gabriela Mayer, Gustavo Simon, Victor Lacombe, Laila Mouallem e Thomé Granemann.

Angela: Esse foi o último episódio do Caso das 10 Mil. Obrigada a você que ouviu a gente até aqui.

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