A dificuldade para 'consertar' o WhatsApp? A natureza humana pode atrapalhar

É sobretudo uma história de algumas pessoas que confiavam nas outras, que por sua vez confiavam em outras

The New York Times

O mundo deve se preocupar com o WhatsApp? Ele se tornou uma nova força virulenta na desinformação e trapaçaria política global?

Ou o mundo deve se felicitar pelo WhatsApp? Afinal, ele não ofereceu uma maneira de as pessoas de todo lugar se comunicarem seguramente, com mensagens criptografadas, escapando da vigilância dos governos?

São questões profundas e complexas. Mas a resposta para todas elas é simples: sim.

Nos últimos meses, o aplicativo de mensagens, que é propriedade do Facebook e tem mais de 1,5 bilhão de usuários em todo o mundo, despertou novas dinâmicas políticas e sociais assustadoras. No Brasil, que está em uma aguerrida campanha eleitoral, o WhatsApp se tornou um dos principais vetores de teorias da conspiração e outras desinformações políticas. O aplicativo teve papel semelhante na eleição no Quênia no ano passado. Na Índia, neste ano, mensagens falsas sobre sequestradores de crianças viralizaram no app, levando à violência grupal que matou dezenas de pessoas.

Tela de celular que mostra, entre outros, atalho para o aplicativo WhatsApp - Arun Sankar/AFP

O WhatsApp disse que está trabalhando para diminuir a difusão de informações falsas no serviço. Os críticos acusam o aplicativo de não fazer o suficiente —e há algum mérito nessa afirmação. Quanto mais fundo se mergulha nos problemas, porém, mais intratáveis eles podem parecer, mesmo que a companhia estivesse movendo céu e terra para solucioná-los.

Diferentemente do Facebook, do Twitter ou do Instagram, o WhatsApp não é uma rede social. É principalmente um app de mensagens de texto simples em que a maioria das conversas é privativa e não mediada por qualquer tipo de algoritmo destinado a aumentar o envolvimento. Esse projeto significa que o WhatsApp tem pouco controle de qual conteúdo decola e qual não; na maioria dos casos, a empresa não pode sequer ver o que acontece no aplicativo, porque o serviço criptografa as mensagens automaticamente.

Isso significa que o verdadeiro problema talvez não seja tanto a empresa ou o produto WhatsApp, mas algo mais fundamental: a ideia do WhatsApp. 

Quando você oferece a todo mundo acesso a comunicação gratuita e privativa, muitas coisas maravilhosas podem acontecer —e o WhatsApp foi uma bênção para populações vulneráveis como migrantes, dissidentes e ativistas políticos. Mas muitas coisas terríveis também podem acontecer —e talvez seja impossível eliminar as ruins sem atrapalhar as boas. 

Sob essa luz, o WhatsApp é uma nova realidade poderosa e permanente, e seus problemas provavelmente não serão solucionados enquanto depender de uma gestão esporádica e às vezes insatisfatória. Por bem ou por mal, vamos ter de aprender a conviver com ele. 

"Pensei que o WhatsApp seria um lugar muito escuro, selvagem, onde todas essas teorias da conspiração se espalhariam e não saberíamos de que estavam falando", disse Yasodara Córdova, bolsista na DigitalHKS, um centro da Escola Kennedy em Harvard que examina o papel das tecnologias digitais no governo. Córdova está trabalhando no Comprova, um projeto de checagem de fatos que monitora sites de redes sociais durante a eleição no Brasil. 

"Mas o que eu vi é que as histórias no WhatsApp são comuns a toda a mídia aqui", disse ela. 

O que diferencia o WhatsApp é a velocidade e o alcance, explicou Córdova. No Brasil, mais de 120 milhões de pessoas usam o serviço, que é oferecido de graça como parte de planos de internet para celulares (isto é, usar o WhatsApp não desconta a franquia de dados das pessoas). Assim como em outros grandes mercados —Índia, África do Sul, Arábia Saudita e grande parte da Europa—, o WhatsApp funciona no Brasil como uma ferramenta de comunicação para todos os fins. É usado para bater papo e contar piadas, trocar fotos e memes, notícias, atividade política e mais. 

Por causa dessa centralidade, afirmou Córdova, os problemas do WhatsApp no Brasil eram principalmente uma função do meio político e de mídia fraturados do país. 

"Por exemplo, não temos realmente bibliotecas públicas no Brasil", disse ela. "Não temos muitas fontes do que as pessoas considerariam informação confiável, e a falta de boas fontes de informação reforça suas crenças quando veem algo falso no WhatsApp ou no Facebook."

Isso não quer dizer que o WhatsApp não tenha instrumentos para conter a confusão. Neste ano, depois da violência grupal na Índia —outro problema que existia antes do WhatsApp e pode simplesmente ter sido ampliado pelo app—, a empresa instituiu regras para limitar a "viralidade" do aplicativo.

Antes, as pessoas podiam simplesmente reenviar qualquer mensagem do WhatsApp a qualquer pessoa. Hoje elas são restritas a reenviar uma mensagem a 20 pessoas; na Índia o limite é de cinco pessoas. O WhatsApp caracterizou esses limites como uma experiência. Uma porta-voz disse que conforme a companhia souber mais sobre como os limites afetam o comportamento dos usuários poderá adotar padrões mais específicos. 

É exatamente a intensa sensibilidade do WhatsApp que torna tão perniciosos os boatos na plataforma. A familiaridade no WhatsApp gera confiança, o que na maior parte do tempo é um ótimo bem social. Mas em situações de rápido movimentação, com altas apostas --desastres naturais, guerras, ataques terroristas ou eleições--, a confiança no aplicativo virou de ponta-cabeça, tornando-se uma força chave por trás da falsidade viral.

Essa foi pelo menos a conclusão de um estudo de 2016 feito por Tomer Simon, pesquisador na Universidade de Tel Aviv (Israel) que examinou como as pessoas usavam a internet durante emergências. 

O estudo de Simon envolveu o sequestro, no verão de 2014, de três adolescentes israelenses que viajavam de carona pela Cisjordânia. O sequestro levou a uma enorme incursão militar israelense na Cisjordânia; os meninos foram encontrados mortos mais de duas semanas depois.

Os militares israelenses haviam instituído uma ordem que impedia reportagens sobre o sequestro, mas no WhatsApp os israelenses começaram a divulgar histórias sobre "algo" que estava acontecendo. Por meio de cuidadosa pesquisa de campo, Simon coletou e tentou identificar a fonte de muitos boatos que se espalharam pelo aplicativo nas primeiras horas após o sequestro.

Os boatos, segundo Simon, tinham uma quantidade notável de detalhes. Vários incluíam os nomes dos meninos sequestrados, que não tinham sido divulgados. Alguns ofereciam fatos chaves sobre a busca. E pelo menos um deles parecia deliberadamente destinado a enganar --dizia que os meninos tinham sido resgatados e que os militantes que os sequestraram foram mortos.

Simon rastreou os rumores até uma fonte surpreendente: jornalistas e outros civis que haviam sido informados sobre a operação e tinham usado o WhatsApp para vazar detalhes a suas famílias ou colegas em pequenos grupos que supunham ser privados.

O rumor que dizia que os meninos foram resgatados foi o que mais circulou. Das pessoas que Simon entrevistou, "duas só o compartilharam com um membro da família, duas com seu grupo familiar no WhatsApp, uma com um grupo de militares no WhatsApp, um socorrista o compartilhou verbalmente com colegas durante seu turno e um se recusou a responder à pergunta", escreveu ele.

A história aqui não é de boataria maliciosa e indiscriminada, disse Simon. É sobretudo uma história de algumas pessoas que confiavam nas outras, que por sua vez confiavam em outras, cada qual passando adiante o que ele ou ela considerava informação importante e necessária a amigos e colegas.

É uma história da natureza humana. E é por isso que, além de aprender a inibir nossa tendência natural a compartilhar, é difícil saber o que pode ser feito sobre notícias falsas no WhatsApp  —além de se preparar para as próximas.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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