Entenda o debate sobre urnas eletrônicas e a derrota do voto impresso na Câmara

Em meio a discurso golpista de Bolsonaro, PEC foi rejeitada pelo plenário da Câmara dos Deputados

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São Paulo

Pauta utilizada pelo presidente Jair Bolsonaro para mobilizar sua base com discursos de tom golpista, a PEC do voto impresso foi rejeitada pelo plenário da Câmara dos Deputados nesta terça-feira (10) e, com isso, acabou arquivada.

Faltaram 79 votos para que a PEC fosse aprovada. Foram 229 a favor do texto, 218 contra e uma abstenção. Eram necessários ao menos 308 votos.

Comissão especial sobre o tema já tinha rejeitado a proposta uma semana antes, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), decidiu levar o projeto ao plenário. A proposta foi apreciada no mesmo dia em que Bolsonaro protagonizou um desfile de veículos militares em frente ao Palácio do Planalto.

Apesar de o presidente ter prometido aceitar o resultado, a avaliação de auxiliares palacianos é de que Bolsonaro vai continuar insistindo no tema.

Já na manhã após a votação, o presidente disse a apoiadores que metade dos deputados que votaram pela PEC do voto impresso não confia no trabalho do TSE e que o resultado do pleito do ano que vem não será confiável.

Há especialistas que defendem a impressão do voto, mas o mandatário pauta seu discurso em teorias e dados mentirosos ou fora de contexto. Não há evidências de fraudes nos 25 anos de uso da urna eletrônica.

Nos bastidores, membros das cúpulas dos Poderes negociam a ampliação do número de urnas eletrônicas que hoje são sorteadas para passarem por teste de integridade no dia das eleições.

Entenda o que estava em debate e como é feita a auditoria da urna.

O que dizia a proposta rejeitada pelo plenário da Câmara? Apesar de a proposta ser conhecida como PEC do voto impresso, na prática, não se tratava do voto impresso diretamente, já que a urna eletrônica seria mantida. O projeto previa a impressão de um comprovante do voto dado na urna eletrônica e que deveria ser conferido pelo eleitor sem que este tenha contato com o registro físico, que seria depositado automaticamente em uma urna.

O Congresso Nacional já chegou a aprovar a criação do voto impresso nesses moldes, em reformas eleitorais em 2009 e 2015. Nas duas vezes, a mudança, feita por projeto de lei, foi barrada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Há registro de fraudes em eleições com urnas? A urna é segura? Desde que foram implementadas, nunca houve evidência de fraude nas urnas eletrônicas. Na verdade, elas representaram um avanço no sentido de diminuir a chance de ocorrência de fraude, ao diminuir o contato e o risco de interferência humana na contagem dos votos.

Atualmente já há uma série de dispositivos e medidas de segurança que são adotados pelo TSE. Apesar disso e de não haver indícios ou ocorrência de fraude em eleições realizadas com a urna eletrônica, a discussão sobre a transparência e a segurança do procedimento como um todo é importante, pois nenhum sistema é 100% seguro, podendo sempre ser aperfeiçoado.

O voto impresso poderia melhorar a segurança das votações? O processo eleitoral pode ser dividido em diferentes etapas. Cada uma delas possui diferentes medidas de segurança e formas de auditagem. Para entender a proposta do voto impresso, é importante dividir a etapa do registro do voto de cada eleitor e a etapa da totalização dos votos.

Diferentes especialistas nas áreas de computação e segurança defendem a impressão do voto como uma forma a mais de auditoria do registro de cada voto, ou seja, para verificar se o voto individual registrado pela urna corresponde ao que foi digitado pelo eleitor.

A crítica é que as auditorias disponíveis atualmente dependem do software da urna. A ideia da impressão do voto seria ter uma forma de auditar independente do software. O código-fonte da urna é o conjunto de letras e símbolos que dizem ao sistema como ele deve funcionar, é uma espécie de manual da urna.

O TSE, por outro lado, sustenta que as auditorias hoje existentes já são suficientes para atestar a lisura do pleito e aponta uma série de pontos negativos para a implementação do voto impresso, medida que, na avaliação do tribunal, aumentaria a chance de fraudes.

Quais as principais formas para auditar o registro do voto? As principais auditorias relacionadas a esta etapa da votação, ou seja, para verificar que o voto registrado pela urna é de fato aquele digitado pelo eleitor, envolvem o código-fonte do software da urna. O RDV (registro digital do voto) armazena em ordem aleatória nas urnas o voto, criptografado, de cada eleitor.

Para verificar se não há falhas ou adulterações no sistema que vai fazer esses registros, o código-fonte da urna fica disponível para consulta pública por seis meses para partidos e outras pessoas autorizadas. Além disso, são realizados os TPS (testes públicos de segurança), ocasião em que especialistas tentam hackear a urna e apresentam as vulnerabilidades encontradas para o TSE corrigir.

A gravação do código-fonte em cartões e a instalação deles nas urnas são feitas em cerimônias públicas, em que as urnas são lacradas.

E, no dia da eleição, com o objetivo de demonstrar que o voto digitado é o voto computado, urnas selecionadas por sorteio são retiradas dos locais de votação e participam de uma cerimônia pública que funciona como uma simulação da votação, chamada de teste de integridade. Os votos digitados na urna também são depositados em papel e tudo é gravado em vídeo. Ao final, há uma conferência para ver os números batem.

Quais outras medidas discutidas para aumentar a transparência das auditorias? Especialistas defendem maior transparência em relação ao código-fonte, inclusive que ele passe a ser divulgado na internet ou ao menos que fique disponível por mais tempo.

O argumento é que seis meses não são suficientes para analisar milhões de linhas de código, ainda mais com um número reduzido de pessoas acessando, em contraponto a toda uma potencial comunidade de programadores.

Outra possibilidade em estudo pelo TSE seria aumentar o número de urnas eletrônicas submetidas ao teste de integridade. Hoje cerca de cem equipamentos são submetidos a esse teste, o que não seria estatisticamente significante, segundo especialistas. Ao todo, são usadas cerca de 500 mil urnas na eleição.​

Uma auditoria independente promovida pelo PSDB entre 2014 e 2015 concluiu que não foi possível identificar fraudes na votação de 2014. No entanto, os autores fizeram várias sugestões de mudanças e sustentaram que não era possível fazer uma auditoria externa independente e efetiva do sistema. O tribunal contesta e sustenta que o sistema já é completamente auditável.

As urnas estão conectadas à internet? As urnas não são conectadas à internet, o que impossibilita um ataque hacker diretamente para tentar alterar o código-fonte durante a votação, por exemplo. O mero fato de não estarem conectadas à rede, contudo, não é uma garantia de que não possa haver tentativa de adulteração do código antes de ele ser instalado na urna. Por isso a importância das demais medidas de segurança e auditoria.

A contagem de votos é secreta, como diz Bolsonaro? Existe chance de um ataque hacker mudar o resultado das eleições? A contagem dos votos não é secreta e pode ser auditada. Inclusive, os especialistas que defendem a implementação do voto impresso destacam que as medidas de segurança e auditoria da etapa da totalização dos votos já são satisfatórias.

Ao final da votação, cada urna imprime boletins com a quantidade de votos de cada candidato, brancos e nulos. Candidatos, partidos e eleitores podem escanear o QR Code dos boletins nas seções eleitorais para comparar com os dados contabilizados pelo TSE e garantir que não houve manipulação durante a transmissão.

Ou seja, em cada uma das seções eleitorais os resultados já são conhecidos e estão registrados em papel. O que ocorre depois disso é a transmissão desses dados ao TSE, para que sejam somados, via rede exclusiva da Justiça Eleitoral, diminuindo a chance de uma interceptação ou ataque.

Quais países adotam urna sem voto impresso, como o Brasil? Diversos países utilizam urnas eletrônicas, no entanto, conforme mostrou reportagem da Folha, fora o Brasil, apenas Bangladesh e Butão adotam a votação por urna eletrônica sem registro em papel em larga escala em eleições nacionais.

A maioria dos países que usa urnas eletrônicas adota a segunda geração dessas máquinas, que imprimem um comprovante em papel, enquanto o Brasil ainda utiliza as de primeira geração.

Citado em postagens de desinformação sobre as urnas, o modelo brasileiro é frequentemente comparado ao da Venezuela. O país, entretanto, diferentemente do afirmado, já possui voto impresso. Lá, o eleitor registra seu voto em uma urna eletrônica, que criptografa e armazena o voto. Então, a urna imprime um comprovante do voto em papel, que pode ser conferido pelo eleitor e, posteriormente, é depositado na urna.

Como Bolsonaro dá demonstrações de que sua preocupação não é a segurança das urnas? As reiteradas acusações de fraude do presidente indicam que sua preocupação, ao exigir o voto impresso, está mais em gerar desconfiança e em mobilizar sua base para o caso de perder as eleições.

Um exemplo disso é que o presidente diz, desde março de 2020, que tinha como comprovar que as eleições foram fraudadas.

"Eu acredito, pelas provas que eu tenho nas minhas mãos, que vou mostrar brevemente, que eu fui eleito em primeiro turno", afirmou Bolsonaro na ocasião. "Nós temos não apenas uma palavra, nós temos comprovado. Nós temos de aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos."

No entanto, durante live em 29 de julho, em que apresentaria provas, Bolsonaro disse que tinha apenas indícios e entre os tais indícios utilizou dados falsos, teorias da conspiração e informações fora de contexto.

Outro exemplo é que boa parte da argumentação do presidente de indícios de fraude, em especial em 2014 e 2018, é centrada na fase da apuração dos votos, que não seria alterada com o voto impresso. Como explicado acima, o momento da totalização dos votos já tem inclusive um recurso impresso para verificação: o boletim da urna.

Daria tempo de implementar o voto impresso até as eleições de 2022? Diversos especialistas, inclusive os favoráveis ao comprovante impresso na urna, afirmam que não seria possível mudar todo o sistema até as próximas eleições e que uma mudança do tipo seria gradual, sendo preciso alguns anos até ser concluída. Na Índia, por exemplo, a transição para urnas eletrônicas com impressão de votos levou oito anos.

Ainda assim, Bolsonaro e congressistas da sua base de apoio condicionam ao voto impresso a confiabilidade das eleições de 2022 —no caso do mandatário, até mesmo a realização do pleito já foi colocada em dúvida sem a proposta implementada.

Quais os problemas apontados no voto impresso pelo TSE e por críticos do modelo? Para o TSE, a implementação do voto impresso aumentaria a possibilidade de fraudes. O tribunal aponta como pontos de risco, por exemplo, o transporte e a armazenagem de 150 milhões de comprovantes impressos de votos.

Entre os problemas elencados por críticos à proposta está que pessoas analfabetas ou cegas não teriam como conferir o comprovante impresso, apenas com a interferência de uma terceira pessoa. Para resolver a questão seria preciso desenvolver uma adaptação do mecanismo pensando nesses eleitores.

Além disso, são apontados riscos do sigilo do voto em caso de a impressora travar, obrigando o mesário a abrir a urna. Outro questionamento é o que ocorreria se uma pessoa intencionalmente disser que o voto impresso difere do que ela digitou, mesmo que esteja correto.

Ataques hackers indicam que houve fraude em eleições anteriores? Bolsonaro também tem utilizado investigações sobre ataques hackers que realmente ocorreram em sua tese de que houve fraude em eleições recentes. No entanto, em nenhum dos casos há indícios que levem a crer que o resultado da eleição ou os registros dos votos possam ter sido adulterados.

Em live no dia 29 de julho, o presidente citou a prisão de um hacker envolvido em um ataque ao TSE em 2020 como indicativo de que teria havido fraude. Como já foi amplamente divulgado, o ataque ocorreu meses antes da eleição e só teria envolvido informações administrativas do tribunal. Em entrevista em 4 de agosto, o presidente citou também um inquérito da Polícia Federal sobre um outro caso de ataque hacker ao TSE, este revelado em reportagem no site Tecmundo ainda em 2018.

De acordo com reportagem da Folha, especialistas consultados e uma pessoa envolvida na investigação foram unânimes em afirmar que o inquérito não conclui que houve fraude no sistema eleitoral em 2018 ou que poderia ter havido adulteração dos resultados, ao contrário do que afirmou o presidente.

As urnas eletrônicas usadas no Brasil têm alguma ligação com a Venezuela? Diferentes postagens nas redes sociais afirmam que as urnas brasileiras seriam da Venezuela e que isso seria indício de fraude. Algumas dessas ligações aparecem associadas ao nome da empresa Smartmatic.

A Smartmatic (empresa com sede em Londres e controlada por empresários venezuelanos) esteve envolvida nas eleições venezuelanas entre 2004 e 2017 e abandonou o contrato após denunciar suspeita de fraude na divulgação oficial dos resultados por parte da Comissão Eleitoral da Venezuela no pleito de 2017.

De acordo com checagem realizada pelo projeto Comprova, o TSE nunca comprou urnas eletrônicas da empresa. A Smartmatic atuou nas eleições de 2012, 2014 e 2016 no Brasil, mas em nenhuma dessas ocasiões forneceu urnas –a empresa prestou serviço de conexão de dados e voz em estados mais isolados do Brasil.

Em 2019, a empresa americana Diebold, que tradicionalmente fornece urnas eletrônicas para as eleições brasileiras decidiu se associar à Smartmatic, sua concorrente, para participar de licitação. No entanto, o consórcio integrado pelas empresas perdeu a licitação.

​ALGUNS DISPOSITIVOS DE SEGURANÇA DA URNA

  • Uso de criptografia

  • Código certifica que o sistema da urna é o gerado pelo TSE e não foi modificado

  • Somente o sistema do TSE pode funcionar na urna

  • O sistema da urna fica disponível para consulta pública por seis meses

  • Em Testes Públicos de Segurança, especialistas tentam hackear o equipamento e apresentam as falhas encontradas para o TSE corrigir

  • Urnas selecionadas por sorteio são retiradas do local de votação e participam de uma simulação da votação, para fins de validação

  • Sistema biométrico ajuda a confirmar identidade do eleitor

  • “Log”, espécie de caixa-preta, registra tudo o que acontece na urna

  • Impressão da zerésima e boletim de urna

  • Processo não é conectado à internet

  • Lacres são colocados na urna para impedir que dispositivos externos (como um pendrive) sejam inseridos

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