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Mendonça irá à prova no STF como ex-agente de Bolsonaro na erosão constitucional

Resta avaliar se o futuro do ex-AGU na corte não imporá a todos um grande passado

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Eloísa Machado

Advogada do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e professora da FGV Direito SP

André Mendonça, cuja indicação ao STF (Supremo Tribunal Federal) foi aceita pelo Senado, tem em seu passado a defesa (por vezes personalíssima) do presidente Jair Bolsonaro (PL), seja como advogado-geral da União, seja como ministro da Justiça.

No futuro, uma vez empossado ministro do tribunal, terá sob sua relatoria uma série de ações de interesse do governo.

No passado, enquanto ocupou o cargo de AGU, Mendonça direcionou a instituição para defender a comemoração do golpe militar em uma série de ações levadas ao Judiciário.

Para a advocacia pública da União, a pluralidade de ideias permitiria às Forças Armadas fixar "datas comemorativas para ressaltar as efemérides relativas às [suas] tradições peculiares" e afirmar que "o dia 31 de março de 1964 sempre foi objeto de lembrança pelas Forças Armadas".

Defendeu, também, a extinção de conselhos participativos, a mudança das regras de demarcação de terras indígenas e a liberação do armamento.

André Mendonça durante durante sabatina na CCJ do Senado, nesta quarta (1º)
André Mendonça durante durante sabatina na CCJ do Senado, nesta quarta (1º) - Lucio Tavora/Xinhua

A política de propagação da pandemia também contou com apoio da Advocacia-Geral da União, que defendeu o esvaziamento de competências de municípios e estados e assistiu às contratações de produção desenfreada de cloroquina por laboratórios públicos.

Os novos advogados-gerais mantiveram a posição e foram além, defendendo até a liberdade de expressão do presidente da República recomendar medicamento ineficaz durante uma pandemia (este é, inclusive, um dos pontos indicados pelo relatório da CPI da Covid como fundamento do crime de propagação de pandemia com resultado morte).

Importante esclarecer que a Advocacia-Geral da União não está incumbida da defesa pessoal do presidente Bolsonaro ou de todo e qualquer ato que este pratique.

Há um debate interessante sobre ser uma advocacia de Estado ou uma advocacia de governo, mas não há dúvidas de que não pode ser uma advocacia anticonstitucional.

Enquanto um tipo de burocracia do sistema de Justiça, a advocacia pública deve estar vinculada aos limites constitucionais. Ou deveria estar.

Por isso, ao não apresentar limites e criar argumentos jurídicos para justificar a atuação do governo federal, a AGU pode ser identificada como responsável, em parte, pela construção de uma arquitetura jurídica que tem contribuído para a erosão constitucional no país.

Não foi só à frente da AGU que Mendonça se alinhou ideologicamente ao governo. Enquanto ministro da Justiça, solicitou a instauração de investigações contra críticos do presidente Bolsonaro, valendo-se para tanto da Lei de Segurança Nacional.

Confrontado em sabatina, disse que apenas cumpria a lei da época da ditadura, ainda que, para isso, descumprisse a Constituição democrática.

Por essas razões, as desconfianças sobre o papel que terá daqui para frente como ministro do Supremo, cuja missão é a guarda da Constituição, não são infundadas.

Como sucessor da cadeira de Marco Aurélio, Mendonça deverá assumir a relatoria de importantes processos, como a arguição que trata do estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro, ações contra censura nas escolas e sobre o montante e distribuição do fundo eleitoral.

Assumirá também uma série de ações propostas contra atos do governo do qual fez parte, seja como AGU, seja como ministro da Justiça.

Dentre elas, as que alegam violações ao meio ambiente por omissão generalizada na criação de planos de combate a incêndios no Pantanal, as que imputam omissões criminosas ao governo diante da precária resposta à Covid-19, violações à saúde e aos direitos territoriais de remanescentes de quilombos, inconstitucionalidades da liberação massiva de agrotóxicos, violações no desinvestimento da Caixa Econômica Federal.

Como relator, ditará o ritmo dos processos. Como ministro, julgará toda gama de processos. Na Segunda Turma, enfrentará processos criminais contra parlamentares com prerrogativa de foro e ações ainda relativas à Lava Jato.

Diante dessa amplíssima agenda, coloca-se uma questão importante neste momento: saber se Mendonça se declarará impedido de atuar nos casos referentes aos atos do presidente Bolsonaro, dos quais participou como AGU ou titular da Justiça.

O tribunal recentemente tem decidido que, em ações abstratas (como são as de controle de constitucionalidade), cada ministro pode avaliar individualmente a pertinência ou não sua participação no julgamento, mesmo que tenha atuado na produção ou defesa da norma impugnada.

Afinal, o exercício de uma função pública pretérita à de ministro, em estrita legalidade e constitucionalidade, não poderia ser um óbice à apreciação da matéria posteriormente.

Porém, a natureza deste governo é distinta e se afasta, cada vez mais, das balizas democráticas, legais e constitucionais.

Uma explosão de litigiosidade no Supremo contra atos de Bolsonaro denuncia justamente a sistematicidade dos ataques à Constituição.

Se, como demonstrou na sabatina feita pelo Senado, Mendonça prefere se afastar da adesão ideológica ao governo, talvez seja prudente afastar-se das ações nas quais, sob a sua batuta, a Advocacia-Geral da União defendeu todo e qualquer ato de Bolsonaro.

Senão, corre-se o risco de o novo ministro ser um agente de apoio à erosão constitucional, agora de dentro do tribunal.

Resta avaliar se o futuro de Mendonça no Supremo não imporá a todos nós um grande passado pela frente.

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