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Eleições 2022

Lula propõe cumprir a Bíblia, mas tarefa pode ser bem mais complexa

Visões sobre bem-estar diferem conforme trecho e interpretação das escrituras

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São Carlos (SP)

"A gente tem que olhar a Bíblia e ela tem que ser cumprida. Todos nós somos irmãos, somos filhos de Deus, e temos direito de viver com muita dignidade e com muito respeito", declarou recentemente o ex-presidente Lula, que busca reconquistar parte do eleitorado religioso no pleito de 2022.

Antes de citar as Escrituras, Lula mencionou primeiro a Constituição brasileira e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, dando a entender que todos esses textos antigos e modernos trazem essencialmente a mesma mensagem.

A ideia de que preceitos éticos da Bíblia inspiraram a legislação e ajudaram a formular o que hoje consideramos como direitos humanos básicos não é descabida, mas acaba deixando de lado a complexidade inerente aos textos bíblicos.

O ex-presidente Lula discursa em São Bernardo do Campo em favor de sua campanha presidencial
O ex-presidente Lula discursa em São Bernardo do Campo em favor de sua campanha presidencial - Marlene Bergamo - 16.ago.22/Folhapress

Por ser, na verdade, uma pequena biblioteca de dezenas de livros, escritos ao longo de centenas de anos pelos mais diferentes autores (a maioria dos quais desconhecidos), a Bíblia oferece uma multiplicidade de visões sobre o que significa uma vida digna e como os seres humanos devem tratar uns aos outros.

É de se imaginar, por exemplo, que Lula não estivesse se referindo à detalhada legislação dos antigos israelitas, apresentada de forma paulatina nos livros bíblicos que vão do Êxodo (o segundo) ao Deuteronômio (o quinto).

Neles, junto com um embrião de "Estado de bem-estar social" (o povo de Israel deve acolher os estrangeiros e deixar parte da colheita para os pobres, entre outras recomendações), as leis recebidas pelo profeta Moisés estabelecem a pena de morte para quem tem relações homossexuais e até para um filho que não obedece aos pais e é "devasso e beberrão".

Por causa de disposições draconianas como essas, o Antigo Testamento (ou Bíblia hebraica) não costuma ser citado como algo aplicável à sociedade moderna (embora grupos cristãos fundamentalistas às vezes sigam esse caminho).

Por outro lado, no Novo Testamento, escrito décadas após a morte de Jesus Cristo, o livro dos Atos dos Apóstolos apresenta um ideal de fraternidade radical no cotidiano da nascente comunidade cristã de Jerusalém.

"Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um", relata a obra, numa passagem que levou algumas pessoas a enxergar esse grupo como seguidor de um "comunismo primitivo".

Nas pregações atribuídas a Jesus no Evangelho de Mateus, vemos um impulso semelhante quando ele diz a um jovem rico: "Vai, vende o que possuis e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me".

Diante da recusa do rapaz, Cristo comenta: "Em verdade vos digo que o rico dificilmente entrará no Reino dos Céus".

As frases de Jesus ordenando que seus discípulos "ofereçam a outra face" e amem seus inimigos costumam ser enxergadas como uma recusa absoluta à prática da violência, mas o Novo Testamento também traz passagens ambíguas sobre esse tema.

Enquanto, no Evangelho de Mateus, Cristo diz "Guarda tua espada no seu lugar, pois todos os que pegam a espada pela espada perecerão", no Evangelho de Lucas ele aconselha: "Quem não tiver uma espada, venda seu manto para comprar uma".

Por fim, o Evangelho de João atribui a Jesus palavras duríssimas contra todo o povo judeu, que acabariam sendo usadas para justificar o antissemitismo ao longo dos séculos: "Vós sois do diabo, vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio".

Para historiadores como o britânico Tom Holland, autor do livro "Domínio: O Cristianismo e a Criação da Mentalidade Ocidental", a influência cultural cristã é parte importante ou mesmo predominante do que passamos a considerar como o desejável para a sociedade, mesmo em países que hoje são pouco religiosos.

Ele argumenta que a ideia de dignidade individual de cada ser humano e o respeito pelos mais fracos e indefesos são conceitos estranhos à mentalidade dos antigos gregos e romanos, também muito influentes na formação da cultura ocidental. Tais princípios só teriam se tornado "óbvios" graças ao cristianismo.

Apesar disso, a multiplicidade de visões presentes dentro da própria Bíblia, bem como as interpretações conflitantes dela defendidas por grupos judeus e cristãos, sugerem que não é óbvio "cumprir" o texto bíblico, principalmente em sociedades nas quais outras formas de religião –ou descrença– precisam ter seus próprios direitos garantidos.

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