Descrição de chapéu O Futuro do bolsonarismo

Bolsonarismo cresceu na esteira de tríade perversa, diz cientista político

Para Carlos Henrique Santana, eleitor de Bolsonaro foi iludido e votou de maneira irracional

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São Paulo

Existem muitas maneiras de explicar a vitória de Jair Bolsonaro (PL) na eleição de 2018. A do cientista político Carlos Henrique Santana envolve o que ele chama de "tríade perversa": três grandes tendências que se alimentaram mutuamente e produziram efeitos contrários ao esperado.

A tríade é composta pela Lava Jato, pelo crescimento da população evangélica e pelas redes sociais. "Em geral, esses três elementos trariam consigo pressupostos positivos para a transformação da coisa pública", afirma Santana.

No entanto, diz ele, essas expectativas se frustraram e, pior, trouxeram resultados deletérios.

"A combinação desses três fatores produziu um quase colapso institucional que levou o eleitor médio brasileiro a desconfiar não só dos partidos tradicionais, entre eles o PT, mas também a desconfiar da própria democracia."

Homem de óculos e barba em frente a uma estante com livros
O cientista político Carlos Henrique Santana - Divulgação

Em uma pesquisa acadêmica, Santana analisou 29 variáveis na eleição de 2018, observando quais favoreceram cada candidato.

De acordo com ele, que fez o estudo em parceria com a economista Marcela Nogueira Ferrario, os dados indicam que a classe média eleitora de Bolsonaro foi iludida. "Ela aderiu ao antipartidarismo e ao antipetismo contra os seus próprios interesses."

Ainda assim, na visão de Santana, se o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não for bem-sucedido, abre-se nova oportunidade para o grupo de Bolsonaro.

"Se não houver essa resposta [aos problemas da população], no médio prazo que seja, é bem difícil que essa extrema direita, que está bem organizada, não volte. É bem difícil que ela não volte."

A viagem de Bolsonaro aos Estados Unidos abriu espaço para discussões sobre quem vai liderar a oposição ao governo Lula. Na sua avaliação, os votos recebidos por Bolsonaro são um legado em disputa ou são capital político pessoal do ex-presidente? A ação política do Bolsonaro tem uma característica muito particular que é a adesão carismática à figura dele e dos familiares. Boa parte da força dele vem daí. E parte da força também decorre de como ele opera por meio das suas relações entre eleitores evangélicos e nas redes sociais. Isso dá ao Bolsonaro uma vantagem importante sobre os demais atores.

Num cenário em que ele seja declarado inelegível pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ele consegue transferir esse capital político para alguém? A gente ainda não viu Bolsonaro ou sua família atuando como cabos eleitorais. Mas, se a gente olhar os políticos beneficiados nas últimas eleições com apoio dele e da família, é nítida a capacidade que ele tem de transferir capital político.

Num artigo apresentado na Anpocs [Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais] no ano passado, vocês afirmam que a rejeição ao PT foi um dos principais fatores por trás da chegada de Bolsonaro ao poder, na eleição de 2018. Como o antipetismo se tornou tão relevante para a ascensão do bolsonarismo? No período que antecedeu a eleição de 2018, nós vivemos um acirramento político motivado principalmente pelo que eu chamei de tríade perversa: as investigações sobre corrupção; a transição demográfica religiosa, com o aumento da população evangélica; e a importância crescente das redes sociais.

São três grandes tendências que ocorreram de forma simultânea e que se alimentaram mutuamente. E por que tríade perversa? Porque em geral esses três elementos trariam consigo pressupostos positivos para a transformação da coisa pública: consolidação do controle sobre a corrupção, maior participação política por meio das redes sociais e uma ideia difusa de que o eleitor evangélico tenderia a uma visão mais responsável em relação a sua própria vida.

E notamos que essas hipóteses não apenas se frustraram, mas na verdade trouxeram efeitos opostos. A Lava Jato, por exemplo, resultou numa enorme degradação institucional, enquanto o próprio sistema de investigação se revelou frágil, para não dizer que trouxe elementos eles mesmos corruptos em termos de mecanismos procedimentais.

A participação política por meio das redes sociais, por sua vez, tem revelado uma tendência bastante controversa, difícil de se sustentar se nós quisermos pensar na participação construtiva em termos de democracia, de cidadania. E a ação das igrejas evangélicas também se revelou predatória do ponto de vista parlamentar e de sua atuação na esfera política.

A combinação desses três fatores produziu um quase colapso institucional que levou o eleitor médio brasileiro a desconfiar não só dos partidos tradicionais, entre eles o PT, mas também a desconfiar da própria democracia, do Estado de Direito, das instituições, o que foi e é muito perigoso.

Quanto esse cenário mudou em relação a 2018? Do ponto de vista do sistema de Justiça, não há mais o peso que a Lava Jato teve, e não consigo ver algo semelhante ocorrendo de novo. Aparentemente, houve uma correção de rumos dentro do Judiciário.

Em relação aos evangélicos, temos uma configuração diferente. Esses grupos mantiveram posição importante no Congresso, e há relação entre eles e as redes de extrema direita dentro e fora do Brasil. Mas a agenda mais radical, que era mobilizada contra a ideia de um Estado laico, isso tende a se enfraquecer por causa do novo governo. Agora, dependendo da fragilidade da base do Lula no Parlamento, a capacidade de barganha dessas bancadas religiosas, principalmente evangélicas, deve se manter.

Quanto às redes sociais, houve uma mudança que passa pelas empresas de mídia tradicionais, que perceberam uma ameaça. Se antes Bolsonaro ainda era, por parte dos grupos de imprensa, percebido de forma ambígua –ou seja, acreditava-se que alguma coisa pudesse se consolidar do ponto de vista de uma institucionalidade—, depois se percebeu que ele não tinha uma visão minimamente civilizada.

Então a imprensa começou a desempenhar um papel mais fiscalizador, mais crítico. Isso diminuiu a capacidade das redes sociais, especialmente essas dominadas pela extrema direita, de pautar de forma exclusiva a dinâmica do comportamento eleitoral. Mas essa situação não está resolvida, porque as redes bolsonaristas ainda são capazes de se contrapor a um enquadramento da opinião pública em certos eventos.

No artigo, vocês também afirmam que as explicações tradicionais sobre o comportamento dos eleitores foram desafiadas pela votação do Bolsonaro em 2018. Por quê? A literatura sobre comportamento eleitoral tem uma hipótese sobre o chamado eleitor inercial. É, basicamente, aquele eleitor que não faz escolhas baseadas numa racionalidade ideológica, programática. É um eleitor que negocia o seu apoio no curto prazo. E, em geral, a literatura que aponta essa dinâmica atribui ao eleitor pobre a tendência de ter um comportamento inercial.

Nosso trabalho, porém, traz elementos que mostram que esse leitor mais pobre, com menos escolaridade, tem um comportamento mais racional. Ou seja, tem um voto ideológico, no sentido de entender os seus interesses estratégicos não apenas no curto prazo, mas também no longo prazo.

Por outro lado, a classe média, os estratos sociais com mais escolaridade e com mais renda, esses se revelaram inerciais.

Em que sentido? À medida que as pessoas alcançam uma certa escolaridade, elas começam a desenvolver preocupações com o Estado de Direito e com a democracia. Se as pessoas querem se empregar e prosperar, a princípio é preciso ter uma ordem institucional e econômica que permita esse tipo de desenvolvimento.

E o Bolsonaro tem uma qualidade extraordinária: ele não é oblíquo, ele não finge nada. Ele não apenas diz o que pensa, se posicionando contra o Estado de Direito, como teve uma política econômica que contrariou as políticas públicas que beneficiaram a classe média.

O grosso dos recursos públicos em políticas de longo prazo antes de Bolsonaro entrou por sistemas de financiamento que beneficiaram principalmente a classe média. São programas de financiamento de imóveis ou de automóveis, bolsas de estudo para acessar universidade, políticas de crédito para o setor agrícola, desembolsos do BNDES etc.

Então a classe média foi iludida. Ela se comportou de maneira inercial, porque aderiu ao antipartidarismo e ao antipetismo contra os seus próprios interesses.

Como vocês chegaram a essa conclusão? Nós usamos dados agregados por município, abrangendo a totalidade das cidades brasileiras, e analisamos a proporção de votos de acordo com 29 variáveis, distribuídas em percentis. E toda a base de microdados que usamos é acessível. Ou seja, estão disponíveis nas instituições correspondentes, que são instituições públicas, reputadas.

Com isso, conseguimos comparar cada uma dessas variáveis de maneira mais sólida. Descobrimos algumas coisas surpreendentes. Por exemplo, nos nossos testes, a violência não foi significativa para explicar o voto em Bolsonaro. Se a gente observar bem, as capitais com as maiores taxas de homicídio estão no Nordeste, região que vota maciçamente no PT.

Também pudemos perceber que, mesmo com a expansão do sistema de ensino superior, com matrículas crescendo, mesmo com a expansão da oferta de crédito, o eleitor beneficiado por essas políticas não necessariamente votou no candidato associado a elas. Então não houve uma identificação dessa classe média com políticas que atendiam aos seus interesses.

No entanto, em relação aos grupos mais fragilizados, aqueles que precisam efetivamente de políticas de proteção, aí nós encontramos uma dimensão significativa em relação à identidade do eleitor.

Ou seja, no cômputo geral, o eleitor bolsonarista respondeu a algumas características típicas da chamada indignação moral. Ele correspondeu àquela expectativa acerca de um voto moralista conservador. E o eleitor do Fernando Haddad respondeu a essa dimensão digamos assim da proteção social.

Dado que Bolsonaro conseguiu se colocar como vetor importante de antipetismo, o que uma eventual terceira via precisa fazer para se ter um nome viável na próxima disputa presidencial? Tem uma parte das respostas possíveis para essa questão que depende de um tipo de mobilização política que, em geral, as pessoas que se apresentam como terceira via não querem fazer. A terceira via sempre se apresenta com uma espécie de roupagem elegante, mas sem uma pauta específica para problemas que são urgentes dentro sociedade, que é o problema da desigualdade e os problemas sociais graves que atingem o país.

Agora, tem uma outra coisa que diz respeito não só à terceira via, mas ao próprio governo Lula. Se Lula e o PT quiserem manter sua posição de vantagem nas próximas eleições, o governo vai ter que fazer um esforço de mobilização. Tem uma palavra difícil de ser usada, é controversa, mas vai ter que fazer uma inflexão populista.

Que quer dizer isso? Vai ter que explorar afetos específicos da população brasileira e entender que, em condições dramáticas de desemprego, de crise etc., esse discurso que mobiliza tem um papel positivo.

Claro que o governo precisa encontrar um meio-termo para garantir estabilidade. Mas, se o país não voltar a crescer, se o governo não conseguir ter uma estratégia de longo prazo e ficar refém de um Congresso superconservador, o capital político pode acabar consumido todo dentro da máquina do Estado, nas relações entre os Poderes.

Enquanto a extrema direita consegue se mover no âmbito social por meio de instrumentos como as redes sociais, os demais partidos buscam retomar uma institucionalidade, mas, ao mesmo tempo, não oferecem respostas efetivas para dilemas urgentes. Se não houver essa resposta, no médio prazo que seja, é bem difícil que essa extrema direita, que está bem organizada, não volte. É bem difícil que ela não volte.


RAIO-X - Carlos Henrique Santana, 44

Cientista político, com doutorado pelo Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sucessor do Iuperj), é professor de economia da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana).

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