EUA fizeram campanha para defender Brasil de possível golpe de Bolsonaro

Em meio a ataques à democracia e ao sistema eleitoral, governo Biden pressionou políticos e militares para respeitarem eleição

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Michael Stott Michael Pooler Bryan Harris
Londres e São Paulo | Financial Times

Quando o Brasil se preparou para uma eleição presidencial, em outubro do ano passado, muitos governos em todo o mundo encararam a eleição com receio crescente.

O presidente Jair Bolsonaro flertava abertamente com a subversão da democracia. Ele atacou o processo eleitoral, alegando que as urnas eletrônicas usadas pelas autoridades brasileiras não eram confiáveis e pedindo em vez disso uma eleição com voto impresso. Fazia insinuações constantes sobre o risco de a eleição ser fraudada, ecoando as denúncias feitas por Donald Trump nos Estados Unidos.

Mas no final, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva foi aceita sem questionamento sério da parte de Bolsonaro, e o veterano político de esquerda tomou posse em 1º de janeiro.

O agora ex-presidente Jair Bolsonaro durante acompanhado de seu vice, Hamilton Mourão, e de lideranças militares durante cerimônia de formatura na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende - Tércio Teixeira - 26.nov.22/AFP

O fato de a eleição não ter sido seriamente contestada é uma prova da força das instituições brasileiras. Mas foi também, em parte, resultado de uma discreta campanha de pressão travada pelo governo dos EUA ao longo de um ano para incentivar os líderes políticos e militares do Brasil a respeitar e salvaguardar a democracia, algo que não foi amplamente noticiado.

O objetivo foi reforçar duas mensagens consistentes para os generais brasileiros inquietos e os aliados próximos de Bolsonaro: Washington tinha posição neutra quanto ao resultado da eleição, mas não toleraria qualquer tentativa de questionamento do processo de votação ou do resultado.

O Financial Times conversou com seis atuais ou antigos funcionários dos EUA envolvidos no esforço e também com figuras institucionais brasileiras para montar a história de como o governo Joe Biden travou algo que um ex-alto funcionário do Departamento de Estado caracterizou como uma campanha de mensagens "muito incomum" nos meses que antecederam a eleição, usando canais públicos e privados.

Todos fizeram questão de enfatizar que os principais responsáveis por salvar a democracia brasileira ameaçada pelo ataque de Bolsonaro são os próprios brasileiros e suas instituições democráticas, que se mantiveram firmes diante dos desafios extraordinários colocados por um presidente que queria se agarrar ao poder a qualquer custo.

"São as instituições brasileiras que realmente garantiram que as eleições acontecessem", diz um funcionário sênior da administração dos EUA. "O importante foi que transmitimos as mensagens certas e mantivemos uma disciplina em nossa política."

Os EUA tinham razões geopolíticas claras para querer demonstrar uma capacidade de moldar os acontecimentos na região. A potência externa antes dominante na América Latina teve nos últimos anos sua influência erodida pela presença crescente da China.

Washington também tinha uma motivação mais direta. Depois de apoiadores de Trump invadirem o Capitólio para tentar subverter os resultados da eleição de 2020, Biden, dizem funcionários americanos, rejeitava fortemente qualquer tentativa de Bolsonaro de questionar resultados de uma eleição livre e justa.

A campanha não foi isenta de riscos. Os EUA foram criticados frequentemente na região por interferir em suas questões internas. Em 1964, Washington apoiou o golpe militar no Brasil que derrubou o governo do presidente esquerdista João Goulart e deu início a uma ditadura que duraria 21 anos.

Esses fatos alimentaram um ceticismo duradouro em relação aos EUA entre a esquerda brasileira, incluindo Lula, que disse em 2020 que Washington "sempre esteve por trás" de esforços para enfraquecer a democracia na região. O governo Biden precisava encontrar uma maneira de transmitir sua mensagem sem que os EUA virassem um tópico político em uma eleição disputada a unhas e dentes.

A solução encontrada foi uma campanha coordenada, mas não publicizada, entre múltiplas áreas do governo americano, incluindo Forças Armadas, CIA, Departamento de Estado, Pentágono e Casa Branca.

"Foi um engajamento muito incomum", diz Michael McKinley, ex-alto funcionário do Departamento de Estado e ex-embaixador dos EUA no Brasil. "Foi quase um ano inteiro de estratégia colocada em prática com um objetivo muito específico em vista –não de apoiar um candidato brasileiro ou outro, mas focada fortemente no processo eleitoral, em assegurar que o processo funcionasse."

Apoio ao processo eleitoral

De acordo com Tom Shannon, ex-alto funcionário do Departamento de Estado, o esforço começou com a visita do assessor de segurança nacional de Biden, Jake Sullivan, ao Brasil, em agosto de 2021. Um comunicado da embaixada disse que a visita "reafirmou o relacionamento estratégico de longa data entre os EUA e o Brasil", mas, segundo Shannon, Sullivan saiu de seu encontro com Bolsonaro preocupado.

"Bolsonaro continuou a falar em fraude nas eleições americanas e continuava a enxergar seu relacionamento com os EUA em termos de seu relacionamento com Trump", diz Shannon, que é também um ex-embaixador dos EUA no Brasil e mantém contatos próximos no país. "Sullivan e a equipe que o acompanhou saíram da reunião pensando que Bolsonaro seria inteiramente capaz de tentar manipular os resultados das eleições ou negá-las, como Trump havia feito. Por isso estudou-se muito como os EUA poderiam mostrar apoio ao processo eleitoral sem parecer estar interferindo. E foi assim que começou."

Com o início da temporada eleitoral, o Brasil era um barril de pólvora político. O país estava profundamente dividido entre Bolsonaro, capitão reformado do Exército e aliado estreito de Trump, e Lula, ícone da esquerda cujas conquistas na redução da pobreza em seus dois primeiros mandatos presidenciais foram ofuscadas por uma condenação por corrupção e um período na prisão. Lula foi libertado antes do término de sua sentença, e sua condenação foi anulada posteriormente por motivos processuais.

Os riscos à democracia brasileira eram claros em um país que tinha uma ditadura militar em sua história moderna. Bolsonaro endeusara o regime que comandou o Brasil de 1964 a 1985 e em seu primeiro mandato não poupou elogios e dinheiro às Forças Armadas e às polícias, aumentando seus orçamentos e entregando cargos-chave no governo a oficiais militares em serviço. Em agosto de 2021, ordenou que tanques desfilassem diante do Congresso e do Supremo Tribunal Federal no dia em que legisladores votavam sua proposta de restauração das cédulas de voto em papel, que acabou não sendo aprovada.

Alguns generais ficaram incomodados com as tentativas de Bolsonaro de politizar uma instituição que procurava se manter alheia à política desde que devolvera o poder aos civis, em 1985, e estavam preocupados com os riscos de os militares violarem a Constituição. O vice de Bolsonaro, Hamilton Mourão, era um deles.

Shannon se recorda de uma visita de Mourão a Nova York para um almoço privado com investidores em julho do ano passado, momento em que as tensões eram grandes. Depois de evitar responder a perguntas sobre os riscos de um golpe, reiterando confiança nas Forças Armadas e em seu compromisso com a democracia, Mourão entrou em um elevador para ir embora, e o ex-embaixador o acompanhou.

"Quando a porta estava se fechando, disse: ‘O senhor sabe que sua visita aqui é muito importante. Ouviu os receios dos presentes à mesa. Eu compartilho esses receios, e, francamente, estou muito preocupado.’ Mourão olhou para mim e disse: ‘Também estou’." O porta-voz de Mourão se negou a comentar.

Urnas eletrônicas

Alguns dias antes do anúncio da campanha, Bolsonaro redobrou esforços para semear dúvidas em torno do processo eleitoral. Ele convocou cerca de 70 embaixadores para uma reunião em Brasília e fez uma apresentação questionando a confiabilidade das urnas eletrônicas. O Brasil foi um dos pioneiros do voto eletrônico, em 1996, e é o único país a receber e contar os votos por meios inteiramente digitais.

Bolsonaro estava sugerindo que as urnas eletrônicas eram propensas a fraudes. Alarmados, representantes dos EUA decidiram que era preciso intensificar sua campanha. Bolsonaro, estimaram eles, havia atraído a comunidade internacional para a controvérsia em torno das urnas eletrônicas ao convocar a reunião, e agora Washington precisava deixar sua posição ainda mais clara.

No dia seguinte, o Departamento de Estado emitiu um endosso incomum do sistema de votação, dizendo que "o sistema eleitoral brasileiro, de eficiência comprovada, e suas instituições democráticas servem de exemplo para países no hemisfério e no mundo". "A declaração dos EUA foi muito importante, especialmente para os militares", diz um alto funcionário brasileiro. "Eles recebem equipamento dos EUA e fazem treinamento nesse país, de modo que ter boas relações com os EUA é muito importante para os militares brasileiros. A declaração foi um antídoto contra uma intervenção militar."

Uma semana mais tarde, o secretário da Defesa Lloyd Austin usou uma visita a um encontro regional de ministros da Defesa, em Brasília, para enviar uma mensagem clara. Disse em discurso que as forças militares e de segurança precisavam estar sob "forte controle civil".

Reservadamente, Austin e outros funcionários deixaram claro para os militares brasileiros quais seriam as consequências de um apoio deles a qualquer ação anticonstitucional, como um golpe. "O relacionamento bilateral entre as forças militares sofreria consequências negativas significativas se os militares fizessem alguma coisa, e eles precisavam respeitar o resultado da eleição", diz um funcionário sênior americano.

A mensagem enviada ao alto escalão brasileiro foi reforçada pela general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA, que cobre a América Latina, em visitas feitas em setembro passado e em novembro de 2021. O chefe da CIA, William Burns, também foi ao Brasil e disse ao governo Bolsonaro que não deveria interferir nas eleições. "O secretário de Defesa, o chefe da CIA, o assessor de Segurança Nacional, todos visitaram o Brasil em um ano eleitoral", diz McKinley. "Isso é normal? Não, não é."

Os EUA também deram assistência prática ao processo eleitoral, ajudando a superar dificuldades para a obtenção de componentes da cadeia de fornecimento necessários para a fabricação de novas máquinas.

Anthony Harrington, ex-embaixador americano no Brasil, conseguiu alavancar contatos na fabricante de chips Texas Instruments para, em suas palavras, "fazer distinções nas necessidades de semicondutores e dar prioridade ao impacto sobre eleições democráticas".

O Departamento de Estado americano e alguns altos funcionários brasileiros também pediram às autoridades de Taiwan para priorizarem a necessidade brasileira de semicondutores produzidos pela Nuvoton, empresa taiwanesa, que são usados nas urnas eletrônicas, segundo duas fontes.

Ao mesmo tempo em que os EUA conduziam sua própria campanha, figuras-chave nas instituições brasileiras estavam tendo reuniões reservadas com chefes militares para tentar persuadi-los a se conservarem dentro dos limites da Constituição e lançando o alerta no exterior sobre os riscos de golpe. Alguns dos envolvidos falaram com o Financial Times, pedindo anonimato devido ao caráter delicado das discussões. Muitos deles ainda preferem evitar qualquer menção ao papel que exerceram.

Um alto funcionário brasileiro que esteve estreitamente envolvido recorda que o ministro da Marinha de Bolsonaro, almirante Almir Garnier Santos, foi o mais "refratário" dos chefes militares. "A tentação de uma ação mais radical era realmente forte para ele", diz o funcionário. "Então tivemos que fazer muito trabalho de dissuasão. O Departamento de Estado e o comando militar dos EUA disseram que rasgariam os acordos militares com o Brasil, desde treinamento até outros tipos de operações conjuntas."

Em um jantar tenso com chefes militares no final de agosto, que continuou até a madrugada, figuras civis tentaram persuadi-los de que as urnas eletrônicas não tinham sido fraudadas para prejudicar Bolsonaro e que eles deviam respeitar a eleição. O timing era crucial: Bolsonaro estava convocando manifestações de apoiadores para o 7 de setembro. Garnier não respondeu a pedidos de comentários.

Luís Roberto Barroso, ministro do STF que na época chefiava o Tribunal Supremo Eleitoral, diz que também exerceu um papel ao solicitar a declaração do Departamento de Estado americano.

Ele recorda: "Pedi [a Douglas Koneff, então encarregado de negócios dos EUA no Brasil] algumas vezes... Declarações sobre a integridade e a credibilidade de nosso sistema eleitoral e a importância de nossa democracia. Ele deu a declaração, e, mais do que isso, conseguiu que o Departamento de Estado emitisse uma declaração em apoio à democracia no Brasil e à integridade do sistema eleitoral."

A embaixada dos EUA se negou a comentar detalhes sobre reuniões confidenciais no período eleitoral.

Círculo interno

Com a eleição chegando mais perto, altos funcionários dos EUA pensavam que Bolsonaro também precisava ouvir mais vozes de seu próprio círculo. Eles identificaram aliados políticos e subordinados, entre os quais nem todos aprovavam as tentativas do presidente de se conservar no poder a qualquer custo, para pedir que insistisse com ele para respeitar os resultados da eleição.

Arthur Lira, presidente da Câmara, o vice-presidente Mourão, Tarcísio Gomes de Freitas, então ministro da Infraestrutura de Bolsonaro, e o almirante Flávio Rocha, secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, foram todos condutores de mensagens dos EUA sobre a necessidade de proteger a integridade das eleições, conforme os envolvidos.

Funcionários dos EUA continuaram a se comunicar regularmente com eles e outras figuras-chave do governo Bolsonaro. "Tivemos a impressão de que as pessoas em torno de Bolsonaro o estavam encorajando a fazer a coisa certa", diz um alto funcionário da administração.

No primeiro turno da eleição, em 2 de outubro, nenhum dos candidatos conseguiu maioria absoluta. Mas após o segundo turno, ficou claro que Lula conquistara uma vitória por margem estreita, mas indiscutível.

Vários aliados de Bolsonaro, incluindo Tarcísio e Lira, reconheceram rapidamente a vitória da esquerda. "Em 24 horas eles aceitaram os resultados do segundo turno", diz McKinley. "Que golpe isso foi para quem estivesse pensando que havia margem para contestar os resultados."

Chocado com o resultado, Bolsonaro desapareceu da vista pública e não reconheceu a vitória de Lula, mas ordenou com relutância que seus funcionários cooperassem com a transferência de poder.

Com a aproximação da posse de Lula, as tensões continuaram. No dia 12 de dezembro, bolsonaristas atacaram a polícia e atearam fogo a veículos em Brasília. Uma semana mais tarde o capitão reformado participou de um jantar com integrantes mais moderados de seu círculo interno, segundo um dos presentes.

Diante das dúvidas sobre a disposição de Bolsonaro de entregar a faixa presidencial a Lula na posse deste, alguns dos aliados dele tentaram persuadi-lo a adiantar seus planos de viajar para o exterior e não comparecer à posse, diz a pessoa que estava presente.

Quando Bolsonaro viajou para a Flórida, dois dias antes da posse de Lula, os americanos, juntamente com muitos brasileiros, deram um suspiro de alívio. Mas o perigo não havia passado.

No dia 8 de janeiro, milhares de bolsonaristas lançaram uma insurreição em Brasília, invadindo o Congresso, o STF e o palácio presidencial, reivindicando uma intervenção militar. Os militares intervieram em questão de horas, mas para reprimir os protestos. Mais de mil manifestantes foram detidos.

Mais tarde, investigadores da polícia encontrariam rascunhos de documentos em posse do ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, e de um de seus assessores mais próximos, o tenente-coronel do Exército Mauro Cid, delineando passos para derrubar os resultados da eleição e se manter no poder.

Torres, que passou cinco meses preso neste ano enquanto aguarda julgamento, diz que o documento encontrado em sua casa foi "vazado fora do contexto" e que não tem validade legal. Não foi possível obter comentários de Cid.

Os Estados Unidos decidiram dar um último empurrão a favor do respeito à eleição. Biden estava no México no momento da insurreição, numa cúpula de líderes norte-americanos, e assistiu ao que estava acontecendo nos jornais. "Ele pediu para falar com Lula na mesma hora", diz um alto funcionário da administração. "Depois do telefonema, propôs ao primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, e ao presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, que fosse emitido um comunicado trilateral em apoio a Lula e ao Brasil. Foi a primeira vez que algo assim foi feito na América do Norte."

Com os revoltosos detidos, os militares sob controle e Lula no poder, a democracia brasileira parece ter sobrevivido à potencial ameaça.

Para o governo Biden, as relações com o Brasil melhoraram, mas ainda assim têm ocorrido atritos com o novo governo. Lula demonstrou pouco reconhecimento público da campanha dos EUA para proteger a eleição. Sua primeira visita oficial a Washington, em fevereiro, foi discreta e durou um dia.

Em abril, ele levou uma grande delegação à China para uma visita de três dias, passando por duas cidades. Nessa visita, rejeitou as sanções impostas pelos EUA à empresa de tecnologia chinesa Huawei, criticou o apoio militar do Ocidente à Ucrânia e endossou a campanha de Pequim por alternativas ao dólar.

Um porta-voz de Lula insiste que ele falou em Washington sobre "defender a democracia e ameaças da extrema direita" e que uma viagem mais longa aos EUA está sendo estudada.

"As pessoas aqui entendem que haverá divergências políticas", diz Shannon. "Mas há um tom de raiva e ressentimento subjacente a tudo isso que realmente pegou as pessoas de surpresa... É como se ele não soubesse ou não quisesse reconhecer o que fizemos."

Tradução de Clara Allain

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